28/11/13

Fragmentos de 2013/11/28



Female Ninjas - In Bed With the Enemy (1976) de Takayuki Miyagawa: ***
Como é possível um exercício ser constituído, de fio a pavio, por moralidade duvidosa, simplificação dramática e sexualização gritante e ainda assim ser um espectáculo grandioso e operático, barato em certos departamentos (não negamos), mas exímio noutros e com propensões psicadélicas fora de série? Chame-se guilty pleasure ou não, a verdade é que a artisticidade entretida (até ridiculamente superficial) é o mote para as aventuras das três kunoichi, encarregues de recuperar ouro perdido do governo. A melhor coisa deste filme politicamente incorrecto é, primeiro, a sua lata e, depois, a inventividade imagética, composta por magníficas cenas de uso de técnincas ninja improváveis, como troca de corpo, asfixiamento vaginal e o golpe da última cena: hipnose cruel que acaba com um estrangulamento letal de nádegas. Não acreditam? Vejam por vocês mesmos!



Black Board (1986) de Kaneto Shindo: *
Coincidência ou não, os velhos mestres pareciam virar-se para os problemas da juventude na década de 80. Keisuke Kinoshita alertava (com sensacionalismo e sem espírito cinematográfico) para os crimes juvenis e para a decadência de uma era sem rumo. Kaneto Shindo, que no mesmo ano tinha filmado o autobiográfico e surpreendente Tree Without Leaves, decide neste caso tratar o tema do bullying nas escolas, pintando o mesmo retrato desencantado da juventude do seu conterrâneo. O grande problema neste Black Board é o facto de ser realmente desorganizado e não ir muito longe na sua mensagem. Parte policial, parte exercício moral em que mergulhamos nos ritos de integração e de exclusão dos jovens, o filme não consegue homogeneizar a componente dramática e revela-se excessiva e chata, a inclusão de várias personagens-intérpretes, isto é, aquelas que deviam fazer a ponte entre os adultos e os jovens (professores, pais, o director da escola e até mesmo um jornalista irritante e despropositado). No final, o irreverente e "sempre jovem" Shindo (mesmo tendo 74 anos aquando da saída deste filme) não demonstra grande mestria e, especialmente, abertura espiritual para "dar a César aquilo que é de César" e, portanto, filmar estes jovens sem a teimosia e negativismo barato de um velho do Restelo.



Seigi no Tatsujin - Nyotai Tsubo Saguri (2000) de Sion Sono: 0
Não é que Sion Sono tivesse a necessidade de conservar a credibilidade da sua imagem, mas Seigi no Tatsujin - Nyotai Tsubo Saguri é coisa que arruína, ou pelo menos, embaraça carreiras. Este pink sem ponta por onde se lhe pegue (e não, nem todos os pinks são assim tão óbvios) é meramente um amontoado de cenas soltas de sexo em parte protagonizadas pelo próprio Sono, aqui também actor que demonstra o seu gosto malcheiroso sem precedentes. Filme com laivos de pornógrafo de segunda categoria, mesmo a inclusão, supostamente mais refinada e de "autor", de mecanismos de quebra da quarta parede (entrevistas, actores dirigindo-se para o espectador e os créditos escritos em pedaços de cerâmica) não passam de adornos vazios que dissimulam a falta de inteligência de todo o projecto. Verdadeiramente terrível.



Forget-Me-Not (2006) de Hiroshi Sugawara: **
Já muitas vezes o dissemos: a confiança no flasback robotiza e cria previsibilidade na acção narrativa, pois está dependente da estrutura "escondimento-revelação". Para sermos mais precisos, o facto do passado avançar ou clarificar o presente torna, tanto um tempo como outro, carentes e fracamente substanciais, se encarados individualmente. Por isso mesmo, um bom filme de flashbacks é aquele que escolhe bem os elos de ligação. Na verdade, Forget-Me-Not tem certas particularidades que enriquecem a tal recorrência constante ao passado. Por exemplo, a perda progressiva de visão da protagonista aponta para a necessidade urgente de reconstruir as imagens da infância, afinal, sublinhando nesse processo a particularidade da memória: a arquitectura de imagens mentais, prescindíveis de visão. No entanto, Hiroshi Sugawara muda o ângulo diegético e rapidamente a tragédia da guerra e os avisos às novas gerações contaminam os relatos e as memórias mais pueris, mas não menos verdadeiras. O filme não encontra muito bem o seu terreno dramático e deixa-se levar pela mensagem anti-militarista, esquecendo um pouco a busca de memórias significativas sem a fatalidade de um trauma.



The Dark Harbour (2009) de Takatsugu Naito: ***
Para apelidarmos esta estreia de Takatsugu Naito de filme mudo não seria, de todo, necessário substituir os parcos diálogos pelos famosos intertítulos. De facto, The Dark Harbour faz-se exprimir na linguagem do cinema pré-sonoro, veja-se o seu humor maioritariamente físico, o seu sentido de dramatismo silencioso (com as sensações sempre amparadas pela corporalidade) ou ainda certos planos abertos (ou de ambientação) dignos dos clássicos. Naito consegue, pois, nesta aventura (des)amorosa reinventar uma gramática perdida sem recorrer à citação ou ao excesso da mímica. Trata-se, pelo contrário, de um filme silencioso, mordaz e gentil que pega na figura icónica do solitário infeliz (e todos os heróis japoneses são solitários) e sujeita-a ao crivo dos enganos e das desilusões. Podemos dizer que há aqui qualquer coisa de alegremente contagiante mesmo quando os desenlaces não são propriamente reluzentes.



It's Me, It's Me (2013) de Satoshi Miki: 0
O novo filme de Satoshi Miki inclina-se, de inicio, para situações absurdas, mas ontologicamente desafiantes. Um jovem finge por telefone ser filho de outra pessoa, pedindo dinheiro para pagar um suposto acidente de carro. Mais tarde descobre que se tornou, realmente, filho dela. A proposta de Miki começa por ter um charme cómico e não nega jamais as suas escolhas mais bizarras (ouça-se, por exemplo, a banda sonora: a melhor maneira de a descrever seria Bach em sintetizador). No entanto, o seguimento da premissa inicial é demasiado idiota, incompreensivelmente futurista e hipotética. Crê tanto na teoria de conspiração que despreocupa-se quanto ao sentido narrativo e ignora a potencialidade que o tema da (perda de) identidade tinha. No final, ficamos com a sensação que a ideia original poderia ter sido desenvolvida e concluída de uma maneira muito mais digna e intelectualmente estimulante, sem parvoíces, hiperbolismos desnecessários e irritantes mudanças de tom e foco.



The Great Passage (2013) de Yuya Ishii: **
Yuya Ishii é um cineasta que beneficia da lentidão para gravar uma certa progressividade natural das emoções e idiossincrasias dos personagens. Claramente, The Great Passage tem uma aparência e um cast digno de superprodução, o que contraria as orientações mais modestas e independentes (nuns casos, estapafúrdias) do jovem cineasta. Algumas coisas mudam, mas outras permanecem. Ishii, aparentemente está mais emocional e menos ácido, mais"clássico" e menos alternativo a descrever. Não cede, todavia, a ritmos mais velozes, nem a  tiques próprios do cinema comercial. O grande problema aqui é que joga-se demasiado no seguro e mesmo uma sensação tradicional, psicologicamente falando, deixa-nos com personalidades e problemáticas, por vezes, unidimensionais. Nem tudo são más notícias. Realmente prazerosa é a maneira como Ishii descreve, não só o processo de criação lento e dedicado de um dicionário (nunca mais vou ver os dicionários da mesma maneira!) mas também o papel do significado das palavras na vida, já que a linguagem tem vida (porque resulta de um processo aberto e dinâmico de comunicação). Se o papel do editor é ir ao encontro das próprias palavras, capturando-as, então todos estes personagens têm o seu quê de caçadores selvagens, pequenos nefelibatas à procura de fixar a magia da linguagem. De facto, Ishii sempre filmou personagens estranhamente engraçados.

17/11/13

Fragmentos de 2013/11/17



Whipmaster - Ballad of Murder (1970) de Takashi Harada: *
O monge vilão e cego da série Wicked Priest (os religiosos travessos por esta altura eram inesgotáveis para os estúdios) também teve direito ao seu filme. Protagonizado por Bunta Sugawara, Ryotatsu difere dos monges agitados e patetas caracterizados pelos irmãos Shintaro Katsu e Tomisaburo Wakayama. Anti-herói confesso com espaço para boas acções, ainda que isoladas, e um carácter impenetrável e bruto, não traz nada de novo nem original ao típico rufia indisposto e estereotipado (nem mesmo a presença da criança inocente a seu cargo) tão omnipresente nestes exercícios série-B. O único destaque vai para a banda sonora: fusão heteróclita de funk, espirituais negros com alguns instrumentos tradicionais (maioritariamente o shakuhachi), algo relativamente comum nos exageros amalgamados dos anos 70, mas aqui realmente energéticos e absorventes.



The Revolt (1980) de Shiro Moritani: *
Outra produção baseada na única tentativa de Golpe de Estado da História do Japão. O famoso incidente 2-26 (isto porque ocorreu no dia 26 de Fevereiro de 1936) foi organizado por um grupo de jovens soldados descontentes com a situação social e com a deterioração, ver mesmo, corrupção da classe militar. Ken Takakura, neste épico de duas horas e meia, encarna um dos militares que encabeça a revolta e, como na maior parte dos filmes sobre o incidente, paira um certo sentimentalismo, algo nefasto e historicamente inexacto em nossa opinião. Shiro Moritani avança a sua narrativa a um ritmo letárgico, filmando excessivamente e sem grande afinco o percurso deste soldado descontente. Outra tentativa de se conceder humanidade ao protagonista surge com o love-interest, demasiado robótico e pouco autêntico. Pouco mais há a dizer a não ser isto: este é um projecto sem alma.



Dangerous Cops Again (1988) de Haruo Ichikura: *
O título já sugeria a insistência provocatória ou desnecessária (?) das aventuras do duo de detectives forasteiros e playboys, mas o abuso dos mesmos lugares-comuns policiais assim como uma narrativa desesperadamente genérica impede, tal como acontecia na primeira instalação realizada por Yasuharu Hasebe, que algum do aprimoramento imagético colha algum mérito. Pouquíssimo temerário no departamento narrativo, Dangerous Cops Again só consegue distinguir os seus dois protagonistas pelas graçolas. Insuficiente e monótono.



Penance (2012) de Kiyoshi Kurosawa: **
Originalmente uma mini-série de televisão, Penance foi reeditado, para fins de exportação, numa longa-metragem em duas partes, quase excedendo as cinco horas de duração. Apesar das diferenças do médio, não assistimos a grandes submissões embaraçosas nem mudanças programáticas. Trata-se, pois, de um projecto típico de Kiyoshi Kurosawa: a sua noção atmosférica e minimalista de terror está com todo o seu potencial (vejam-se os posicionamento de câmara, colocação de personagens no plano, etc.) e a imprevisibilidade patológica, contudo, discreta e contraída, dos seus personagens não é olvidada. Quatro meninas assistem à morte de uma amiga e o filme salta para o futuro de cada uma delas, futuro esse sempre envolto em traumas ou atitudes desviantes, já que são pressionadas pela presença constante da mãe da criança defunta. Com o seu estilo sóbrio e metódico, Kurosawa tem a oportunidade de explorar vários registos e disposições (comédia, drama, etc.) sem nunca abandonar a tensão lenta e psicológica que caracteriza toda a sua obra. Podemos dizer que essa inscrição experimental resulta desequilibradora e, claramente, não se adapta bem ao formato longa-metragem, formato que assume uma continuidade, neste caso, fastidiosa e irregular. Por exemplo, se há capítulos bem conseguidos nesta odisseia de vingança e trauma (nomeadamente o primeiro e o terceiro), o epílogo no quinto capítulo é apressado, confuso e, no cômputo geral, insatisfatório, lançando soluções de última hora e revelações (telenovelescas) de evitar. Se avaliássemos cada episódio, as notas seriam bastante díspares, mas como experiência única e continua (e com um final tão qualitativamente diferente do resto), Penance não é mais do que uma grande confusão com momentos de assinalar.



A Story of Yonosuke (2013) de Shuichi Okita: ****
Há dois tipos de filmes: os maiores do que a vida e os que se mantêm equilibrados, à tona dela, gentilmente revelando segredos para quem estiver disponível para os guardar. No primeiro caso, inclinamo-nos para a sensação de arrebatamento, no segundo, apenas temos suficientes e discretas comoções. Ora, a terceira longa metragem de Shuichi Okita enquadra-se no segundo tipo. De facto, A Story of Yonosuke com a sua disposição amável, com a generosidade emotiva dos seus personagens e com o seu humor modesto, porém hilariante, enche-nos as medidas e representa um passo de gigante para Okita que vem-se afinando a cada nova obra, apostando sempre em filmes conduzidos por uma gentileza contagiante mas, ainda assim, justa com as vicissitudes da vida. Aqui, como nas suas tentativas passadas, vive-se de personagens e toda a dedicação é-lhes concedida, sejam protagonistas, secundários, etc. Este é um valente festival de momentos, de sorrisos, de acting (a minha vénia para Kengo Kora) e de sentimentos nostálgicos mas sempre com uma sensação positiva prevalecente e recompensadora.



See You Tomorrow, Everyone (2013) de Yoshihiro Nakamura: ***
É de salutar que o mais recente filme de Nakamura não negligencie uma análise social, escondida somente no subtexto, sem nunca esquecer também o apreço pelo seu protagonista bizarro, condenado à solidão e ao abandono. As peripécias (quase todas cruéis e sem grande esperança) de Satoru, aparentemente alguém que se recusa a crescer e abandonar o bairro artificial composto por edifícios pré-fabricados, não pode ser dissociado do desenvolvimento massificado da sociedade japonesa desde o final dos anos 70 até hoje. A analogia tem uma acuidade avassaladora se notarmos, através dos anos, a passagem do abandono sucessivo dos seus colegas à consequente ocupação por minorias étnicas, daquilo que era uma das representações do milagre económico. Nakamura, às tantas, filma esses prédios estéreis e essa urbanização estandardizada como se tudo tivesse sido assombrado e o seu filme mais não fosse do que um conto apocalíptico onde os ostracizados se reúnem. Claro que continuamos a ter um filme baseado no protagonista e este seu tão característico amor pela "pessoa errada na situação errada" (que é obrigada a "encontrar-se" na folia) mantêm-se, mas aqui excedem-se os módulos do entretenimento de sorriso fácil que imperavam nas suas películas pipoca. Este olhar não encontra concessões e é até uma marca insofismável de desencanto e amadurecimento. Como nós gostamos...



Like Father, Like Son (2013) de Hirokazu Koreeda: ****
Desde Nobody Knows a I Wish assistimos em Koreeda à obsessão antiga de encontrar (e resgatar) nas crianças um estado de honestidade em bruto. Falando em termos clássicos, nessas obras havia muito mais Hiroshi Shimizu do que Yasujiro Ozu, isto é, as crianças não serviam meramente propósitos de comic relief (ao desabarem comicamente o mundo dos crescidos) mas era essa sua inocência comovente destroçada pelos adultos, ora por negligência, ora por egoísmo (ou porque crescer é uma inevitabilidade). Como o título deixa claro, este é um filme sobre a interdependência entre adultos e crianças. É, por isso, um filme sobre família(s) - e que tem feito Koreeda senão escalpelizar, precisamente, os afectos familiares com todas as suas diferenças? - e a insubstituibilidade (ou não) dos filhos. É, em rigor, um conto sobre a importância dos afectos e como, em última instância e ao fim de muito sofrimento, esses afectos podem vencer qualquer petição de verdade ou conceito como relação de sangue. Formalmente, continuamos embarcados numa estética discreta, delicada e não-impositiva, mesmo quando tudo (principalmente a temática) indicaria o contrário. Cada personagem representa um rio complexo, instável e tenso de emoções, contradições e tentativas de mudança que nunca permitem um sentimento de artificialidade instalar-se. Os adultos de Koreeda, ironicamente, aqui muito mais desamparados do que as crianças são chamados a prestar declarações como se o processo de crescimento fosse, afinal, o deles. Como todos os bons cineastas, Koreeda aposta na pluralidade das perspectivas (os filhos são vistos através do olhar hesitante dos pais e, simultaneamente, os pais são vistos pelos olhos perturbadoramente passivos das crianças) e na indeterminação do final. Tudo motivos para enriquecer a experiência e aproximá-la de um ritmo autêntico, à flor do real.

08/11/13

Fragmentos de 2013/11/08




A Chivalrous Spirit (1958) de Sadatsugu Matsuda: **
A força das program-picture sempre residiu na variação da repetição, isto é, quanto mais transfigurador e original fosse a modificação na estrutura, mais único e original, mais "artístico" até, seria o produto final. Sadatsugu Matsuda no seio da Toei filmava a um ritmo frenético, muitas vezes adaptando a mesma história duas ou três vezes em curtos espaços de tempo: isso passou-se, por exemplo, com o lendário conto Chushingura (os 47 Ronin) , rodado por Matsuda em 1958 e 1961. Portanto, A Chivalrous Spirit conta as peripécias clássicas de Shimizu no Jirocho e os seus 28 yakuza, o que não é nada estranho já que a mesma história seria recorrente nos jidai-geki futuros da Toei (Masahiro Makino filmaria Kingdom of Jirocho em 1963) e da Daiei (o díptico Jirocho Fuji, realizada por Kazuo Mori em 59 e 60). Pormenores históricos à parte, este é um filme razoável de estúdio, contido e focado nas prestações (já que se trata de um cast all-star) com pouco a destacar a não ser o final trágico e incompleto, que prometia mas não deu sequela.



A Scoundrel (1965) de Kaneto Shindo: ****
Situado a meio caminho entre os aclamados Onibaba e Kuroneko, A Scoundrel é uma obra-prima esquecida do mestre Kaneto Shindo. Em primeiro lugar, este é um filme que simultaneamente se aproxima e distancia dessas obras não menos nem mais marcantes do realizador. Distancia-se porque prescinde qualquer componente esotérica: Onibaba era uma fábula ética construída a partir da maldição sobrenatural, Kuroneko, por sua vez, era uma história de vingança baseada no folklore fantasmagórico. Diferentemente, neste A Scoundrel apenas há espaço para a intriga, sempre com os pés bem assentes na terra, e a demonstração nefasta e crítica de uma sede de poder sem limites e travões. Isto é material digno de Shakespeare, se lhe tirarmos (e perdoarmos) os fantasmas. É nesta descrição malévola da ganância e da anarquia do poder que reencontramos as suas duas outras obras. De facto, Shindo nos anos 60 estava interessado em descrever as relações de poder e influência entre os humanos, especialmente nas sociedades feudais, e raramente as suas conclusões eram optimistas. Em Onibaba, por exemplo, a ganância de um bando de forasteiros surgia através do desejo de obter mais dinheiro, riquezas e destroços dos guerreiros que morriam. Já aqui, a ambição, se bem que também transcende as regras sociais nomeadamente as maritais, vêm das suas esferas mais altas e constituintes. O braço direito do shogun, Ko No Moronao nutre uma obsessão por uma mulher casada. Instigado pela sua serva (que grande papelão de Nobuko Otowa), o general não dá término à sua busca enquanto não conseguir roubar a sua paixão do marido. Isto dá o mote para uma quantidade de cenas que, diacronicamente, vão da comédia à tragédia. Shindo pode até finalizar a sua narrativa no pessimismo, porém, não deixa de subverter esse sentimento negativo (o de que os poderosos são intocáveis e estão acima de todas as regras) com um desafio poderoso e inquietante: não existe poder desmesurado que conserve o que quer que seja. A ambição corrompe até os lucros secretos que julgávamos retirar dela. Mais uma fantástica fábula moral assinada por Shindo.



Hoodlum Priest and the Gold Mint (1968) de Kazuo Ikehiro: **
O que fazia Shintaro Katsu, um dos actores definitivos da sua geração, nos últimos anos antes da falência da Daiei? Alternava entre o massagista cego Zatoichi (o papel da sua carreira, 26 filmes), Asakichi, o yakuza de bom coração da saga Akumyo (conta exactamente 16 filmes), o soldado insolente e boçal de The Hoodlum Soldier (8 filmes) e ainda tinha disponibilidade para participar em produções semi-independentes como Hitokiri de Hideo Gosha ou The Man Without a Map de Hiroshi Teshigahara. No final dos anos 60, Katsu era, certamente, um homem ocupado e a juntar aos trabalhos a Daiei apostava em dois filmes (este é o segundo) em que o carácter rebelde e imprevisto do seu personagem era, mais uma vez, um pré-requisito. A isto não se pode esquecer a tentativa de querer aproximar a irascibilidade e o atrevimento naturais de Katsu a linguagens na veia do exploitation que fazia furor na Europa e nos Estados Unidos e chegava com pés de lã aos estúdios japoneses. Por isso, neste Hoodlum Priest o personagem é um monge budista atípico que se apaixona facilmente por mulheres, um mestre no roubo e na extorsão que não olvida um sentido de justiça algo bizarro. Kazuo Ikehiro - que, na nossa opinião, era um dos mestres ignorados da Daiei - não consegue demonstrar a sua excepcionalidade característica e o filme não é mais do que uma coleção de vinhetas engraçadas e entretidas com o sempre festivo Katsu a não perdoar. Coincidência ou não, Tomisaburo Wakayama, o irmão mais velho de Shintaro Katsu, também interpretou no mesmo ano, em 68, um monge semelhante numa saga assinada pela Toei que começou com Wicked Priest de Kiyoshi Saeki e teve mais quatro sequelas até 1971. Uma coisa é certa: se queres ser provocante, usa monges!



The Dancer (1989) de Masahiro Shinoda: **
Adaptação do célebre conto homónimo de Mori Ogai, que por sua vez, era baseado nas suas experiências em 1884 aquando de uma estadia em solo germânico por motivos académicos, The Dancer, como todas as histórias de amor impossível, tem como pressuposto o confronto entre os outros e aquilo que poderíamos chamar de egoísmo a dois. A particularidade do conto de Mori é que, em rigor, não eram os outros que tornavam impossível a concretização do projecto amoroso, mas sim, o próprio amante, um estrangeiro (e como poderia não se ser estrangeiro, sendo um japonês na Alemanha do século XIX?) que abandona a sua amada alemã, grávida e com um ataque de nervos. Nesta versão cinematográfica, Masahiro Shinoda quis retomar a instância clássica que aponta as culpas e responsabilidade derradeira para os outros (para um colectivo outro), desta feita, limpando um pouco os sentimentos dúbios e negros do nosso protagonista ao desistir da sua relação e voltar para o seu país natal. Porém, algo que sempre se realça aqui é a descoberta da palavra amor, completamente contrária quer ao dever militar, quer ao interesse mais lato pela nação japonesa. Assim que esse fino segredo é revelado, nada mais faz sentido a não ser a pessoa amada, o objecto do desejo. Talvez por isso, Shinoda esteja mais interessado em diferenciar culturas do que desenvolver a psicologia dos seus personagens (essa apenas dada em longos e, por vezes, desnecessários monólogos em voz-off): dificilmente um japonês pode amar à ocidental, pois sempre se suplanta no seu interior a realidade colectiva que apaga e castra a liberdade individual. Infelizmente, este tipo de paralelos identitários frequentemente esteriliza a vitalidade e profundidade dos envolvidos. E este caso não é excepção.



Graduation Journey: I Came from Japan (1994) de Shusuke Kaneko: 0
Poucas pessoas sabem que o famigerado realizador que revitalizou Godzilla e Gamera e também levou o manga Death Note para o grande ecrã foi, em tempos, especialista em comédias ligeiras. Prova disso é o seu All Quiet on the Employment Front de 1991 (referência satírica ao filme e livro de guerra, All Quiet on the Western Front), comédia juvenil que reunia um grupo de recém-licenciados à procura de emprego numa sociedade altamente competitiva sem lugar para todos. Muito do humor resultava de uma visão cínica do Japão pós quebra da bolha económica, mas o tom era quase sempre leve e descomplexado. Este Graduation Journey é ainda mais - e infelizmente - um produto do seu tempo. Supostamente um filme sobre o sucesso instantâneo que qualquer japonês pode ter na Ásia (nomeadamente na Tailândia, onde qualquer japonês pode ser ídolo pop), Kaneko não deixa de ecoar um sentimento desgostoso ao ridicularizar a carência cultural dos povos asiáticos e a reverência absurda que nutrem pelo Japão. Claro que a ideia seria a dos japoneses se rirem deles próprios no processo, mas, finalmente, Graduation não consegue ser engraçado e situa-se apenas entre o politicamente incorrecto, o sentimental e o parvinho.



Hello, My Dolly Girlfriend (2013) de Takashi Ishii: 0
Nunca questionámos a importância e o papel de Takashi Ishii na redefinição do cinema erótico quando o seu trabalho como argumentista (e, posteriormente, realizador) começou no final dos anos 70. Os seus mangas polémicos eram fonte de inspiração para realizadores tão marcantes como Chusei Sone, Noboru Tanaka, Toshiharu Ikeda e até mesmo Shinji Somai (que fez do seu Love Hotel um filmalhão sem precedentes). Por isso mesmo, vê-lo nestas figuras tristes e a dispor de um erotismo tão depravado, gratuito e explorador é confrangedor. Ishii continua a usar certas imagens de marca, nomeadamente a sua fotografia expressiva e equilibrada entre cores quentes febris e frias virulentas. Mas, tirando essa orientação da cinematografia, a verdade é que este Hello, My Dolly Girlfriend mais não é do que um filme de fetiches (no pior sentido do termo), auto-indulgente e interessado irritantemente em filmar por entre as pernas das actrizes. Pouco aqui há de psicológico (era essa uma das suas assinaturas no passado), a não ser os sonhos molhados e as projeções infantis de um otaku. Incrível desperdício de tempo e talento.



Shield of Straw (2013) de Takashi Miike: *
Takashi Miike sempre foi o campeão da "suspensão de juízo" e as obras que firmaram a sua carreira (Visitor Q, Ichi the Killer, Gozu, a trilogia Dead or Alive, Audition, entre dezenas de outros casos) podem, certamente ser vistas como novas maneiras do espectador ser espantado se ele jurou não se interrogar sobre a plausibilidade da coisa filmada. Não é novidade, portanto, que a postura camaleónica de Miike se apoiasse no género para agitar a consciência ou abalar o estômago e as sensibilidades dos espectadores à deriva nos seus devaneios, mas confiantes. Shield of Straw, no entanto, comercializou a sua, em tempos, tão expressiva suspensão do juízo, transformando-a num espectáculo alvoraçado onde só os calafrios contam. Neste caso, certas inverossimilhanças assim como o próprio pressuposto da narrativa (um milionário publicamente põe a cabeça a prémio do violador e assassino da sua neta) remam contra a maré de um certo realismo nos dilemas e nos sentimentos ulteriores dos personagens: um grupo de polícias que têm de assegurar, contra todos os civis e até mesmo traidores no seio policial, que o psicopata chega são e salvo ao quartel general. Miike, quando estava na sua melhor forma, deitava pela janela qualquer apego, à nossa escala, com os sujeitos filmados e quando isso acontecia a subversão cómica, até mesmo um sentimento de fraude absurda, era uma consequência natural. Aqui, Miike executa um dramalhão frágil, com pés de barro, disposto apenas a criar situações de ansiedade, aparentemente abertas quanto ao seu desfecho, que vão alimentando uma e outra vez a experiência que apenas vai vivendo do sentimento instável de dúvida radical da segurança da escolta policial e do assassino. Lá para o fim tenta-se encenar o diálogo clássico do mal puro (o mal sem arrependimento ou possibilidade de redenção) o que cria, por sua vez, um sentimento de impotência no esforço para cumprir a missão. Mas, por esta altura, já estamos cansados de tanta forma e pouca substância. Começamos, inevitavelmente, a queixar-nos desta mal amanhada e fatídica suspensão de juízo que está lá para servir propósitos narrativos e não forma, por si só, uma linguagem surreal e fantasiosa, digna de cinema, digna de Takashi Miike.



Tokyo Family (2013) de Yoji Yamada: **
Uma das coisas mais belas e certeiras que Audie Bock disse sobre Ozu foi o seguinte: «os (seus) filmes não são para aqueles que procuram soluções utópicas. Ozu nunca se comprometeu em anunciar a possibilidade do amor romântico, do sucesso terreno ou até mesmo da comunicação humana. Apenas a aceitação, e jamais a felicidade, estava aberta para os seus personagens, independentemente da classe social a que pertencessem. Evitando técnicas virtuosas, assim como estruturas dramáticas ele mergulhou directamente na irracionalidade do carácter e naquela verdade terrível: "a vida é decepcionante, não é?"» Esta conhecida sentença de Noriko no Tokyo Story original - que podia ser repetidamente aplicada a toda a obra ozuniana como se de um mantra se tratasse - era a maior demonstração de que o seu filme mais melodramático era também o mais desencantado, o mais severo ao ponto de se instalar uma tristeza comovente e silenciosa, uma dor impotente de mundo. Estava visto que um remake dessa obra cimeira não era tarefa fácil, mesmo tratando-se de Yoji Yamada na cadeira de realizador, o máximo seguidor da estética Shochiku firmada pelos mestres Ozu e Kinoshita. Na verdade, Yamada esforça-se para replicar cada cena, simultaneamente reverenciando o original com tiques de museólogo  e alterando alguns pormenores para informar aos espectadores que sessenta anos passaram. O casal de idosos agora tem problemas com as novas tecnologias e Noriko, que no original de 1953 era uma viúva de um filho morto na segunda guerra, agora é meramente a namorada desse filho mais novo, aqui vivo. Por muito que Yamada entre num esforço mimético (esforço esse que inclusivamente é formal), a única coisa que não consegue captar é, precisamente, a tragédia que reside nos sorrisos vagos, melhor dizendo, o desencanto ozuniano, discreto e secreto como tudo. Por isso mesmo, de todos os momentos chave colhidos por este Tokyo Family, prescindiu-se apenas de um: o momento em que "a vida é decepcionante, não é?" é proferida, como se não houvesse espaço para o lado mais negro, porém mais fascinante e comovente do mestre japonês. Yamada é apenas um Ozu de museu sem essa verdade terrível.