22/10/15

Fragmentos de 2015/10/22



The Moon Has Risen (1955) de Kinuyo Tanaka: ***
Um velho argumento escrito em 1947 por Yasujiro Ozu e Ryosuke Sato foi parar às mãos da actriz Kinuyo Tanaka, que em 1955 já era realizadora  de uma só película. Ao que parece, houve sucessivos mal-entendidos entre o realizador de Late Spring, a Shochiku e a Daiei, dois estúdios que recusaram oferecer os seus talentos para a feitura de The Moon Has Risen, ficando o projecto condenado ao esquecimento. Kinuyo Tanaka, oito anos após essa querela, virou-se para a velhinha Nikkatsu, onde tinha rodado Love Letter, e os trabalhos seguiram sem obstruções, com total apoio do mestre. Se não contarmos nem com a década de 30, quando Ozu cedeu um dos seus argumento para Tomu Uchida, nem com os anos imediatamente a seguir à sua morte, 1965 e 1966 com Noboru Nakamura e Minoru Shibuya a adaptarem argumentos incompletos que seriam os seus próximos filmes, a circunstância de podermos ver, em plena maturidade ozuniana, uma interpretação da sua obra que passasse por uma outra visão (ainda por cima feminina) revela-se algo completamente surpreendente e que nunca mais se iria repetir. Na sua essência, as situações ozunianas estão cá todas: a família como micro-cosmos social, um viúvo (o patriarca outra vez encarnado pelo enorme Chishu Ryu) e uma viúva (a irmã mais velha) contrastando a juventude das outras duas irmãs que partem para a cidade para se casarem, enfim, a óbvia mas não menos poderosa dicotomia entre os cenários "demasiado pacíficos" de Nara (parafraseando a irmã mais velha) e as paisagens agitadas e modernas de Tóquio, nunca mostradas mas inferidas numa tirada final de Ryu: "a juventude deve adorar a sujidade e a ferrugem de Tóquio." Com isto não podemos descurar o contributo de Tanaka para este argumento que pode ter Ozu escrito por todo o lado, mas não é, na sua passagem para o grande ecrã, mero mimetismo vazio ou tributo exagerado. Na verdade, a influência de Ozu povoa os rebordos, mas aquilo que surge no âmago e parece interessar a realizadora é o despontar, por parte das duas irmãs, do amor: a mais nova começa por viver mais intensamente a possível relação da mais velha do que a dela e a mais velha descobre, entre telefonemas e encontros marcados sem o seu consentimento, que ama o homem que todos suspeitavam. Esses amores ingénuos e doces de onde se deduzem os casamentos, e nunca o contrário, enchem os acontecimentos com uma ternura que é rara, mas não inexistente, em Ozu. Kinuyo Tanaka está tão interessada em provocar e contemplar o amor que torna amável que, ela mesma enquanto actriz, interpreta brevemente e com um sentido cómico assinalável, a ama desajeitada que aproxima a irmã mais tímida do seu interesse amoroso.



Growing Up (1955) de Heinosuke Gosho: ***
As adaptações cinematográficas da obra de Ichiyo Higuchi - a célebre escritora gravada na nota de 5000 yen -  tendem sempre a dispersar-se dos seus protagonistas, como se os cineastas estivessem interessados em fixar a atmosfera social da Era Meiji desdobrando-a em várias vozes e intérpretes. Tadashi Imai fez algo semelhante quando tripartiu os "contos" de An Inlet of Muddy Water, dois anos antes desta instalação goshiana que não divide definitivamente as narrativas mas entrecorta-as, muitas vezes esquecendo quem devia focar mais do que todos os outros. Growing Up, a despeito dos vários personagens que habitam a trama, foca-se sobretudo em duas crianças, Shinnyo e Midori, que vivem dentro do famoso distrito de Yoshiwara, mais conhecido como o bairro vermelho das gueixas, das yujo e das oiran. O contraste entre a inocência e a perda dela através da porta mais representativa de um mundo adulto vedado deixa-nos algo perplexos. Yoshiwara seria o local mais adverso à conservação da inocência de uma criança, mas ela resiste enquanto todas as relações nas suas redondezas são modificadas  pelas exigências da "indústria da carne" (a irmã de Midori que se tornou uma reputada oiran ou a irmã de Shinnyo que será negociada, contra a sua vontade, como cortesã para uma família mais rica). Paira, na vida destes dois enamorados cuja idade nem permite consciencializar esse facto, o espectro das relações mercantis que os adultos impõem às mulheres. Sem dúvida, as cenas mais tocantes são aquelas em que observamos Midori (grande Hibari Misora) a "crescer", tornando-se mais feminina, como nos canta a narradora, mas decididamente mais triste. Noutro momento, Midori chega mesmo a afirmar que morreu para se tornar adulta, o que fornece um carácter ainda mais fantasmagórico à cena em que ela observa uma antiga cortesã cujos dias de glória desvaneceram e que apenas conhece as marcas violentas de uma vida que não permite a velhice. Se nos concentrarmos na frase da irmã de Midori, que lhe pede, doente e explorada, para sempre conservar a sua inocência, a cena derradeira de Growing Up prova melancolicamente que nada se conserva, crescendo. Face ao ramo de flor de cerejeira (para os japoneses simboliza, como não podia deixar de ser, pureza, virgindade...) deixado por Shinnyo à porta de sua casa no dia em que ela se faz "mulher", Midori, ao passar na ponte levadiça que divide a rua pública e o mundo dos "prazeres privados", deita para água tal oferta simbólica, como se morresse pela segunda vez.



The Sands of Kurobe (1968) de Kei Kumai: ****
"Sendo um realizador do pós-guerra, Kumai está preocupado com os custos de uma vida oprimida sob uma ideologia nacional." Na frase anterior, o Professor Tim Cross parece ter dito o essencial sobre este épico de mais de três horas que facilmente se resume, mas dificilmente se esgota nas suas imagens nada fetichizadas de uma resiliência colectiva sufocante. O autor prossegue e desvenda-nos um bocadinho mais. The Sands of Kurobe, um filme cujo tema é "a subsituição da nação por uma companhia encarando-se como uma instituição que requer o sacrifício absoluto" dos seus trabalhadores. Com efeito, este único personagem, encarnado pelos múltiplos escavadores de um túnel cuja feitura ulteriormente facilitará o transporte de materiais para a construção de uma barragem na montanha, pode muito bem denunciar a sensibilidade crítica e política de um realizador a quem a glória dos grandes monumentos não devia esquecer ou esconder o sangue e o suor dos explorados que os ergueram. Para Kumai as duas dimensões estão tão ligadas que a obsessão documental toma conta das determinações psicológicas e a duração estende-se, não como correlato de um elogio à máquina estatal que produz colossos, mas para nos afundar (literalmente) nos abismos escuros de um trabalho com esta envergadura. Esta violência omnipresente, emprestada a um registo distante da ficcionalização e que por isso mesmo nos agride com uma noção crua de "veracidade", chega a colocar certos entraves ideológicos, pois a ambiguidade da pura observação parece ser retirada mais facilmente do que uma crítica politicamente comprometida. O que observamos repetidamente em The Sands of Kurobe não são os golpes de bastidores de quem realmente tem o poder, mas antes a relação tensa entre os representantes desse poder (e que também estão na obra) e aqueles condenados a acatar com as suas ordens, arriscando constantemente a sua vida e não percebendo o esforço absurdo que lhes é exigido. O personagem, a princípio idealista, de Yujiro Ishihara aprende com o pragmatismo do de Toshiro Mifune a não recusar o apoio que pode oferecer aos trabalhadores mesmo que se oponha teoricamente à situação extremamente injusta e perigosa em que eles foram colocados. Também o mote da câmara de Kumai passa por aqui: participar no sistema não é sujar as mãos da pura ideologia. Ou então, só se podem criar imagens carregadas de veracidade estonteante quando se transcende qualquer ideologia, sujando precisamente as mãos. E a câmara de Kumai, quer nos teimosos momentos em que a impossibilidade do projecto prevalece, quer na catarse primária de se ver o impossível ultrapassado, suja-se, cobre-se de lama e água suja, enfim, não desgruda dos sujeitos que doentiamente filma e que doentiamente são dirigidos. Acompanhar o carreiro das formigas é a maneira mais eficaz de percebermos as razões da devoção triste pela rainha.



Double Suicide at Nishijin (1977) de Yoichi Takabayashi: ****
Dentro do catálogo Art Theatre Guild, a morte dos protagonistas, a dada altura, fazia regra. De facto, são mais raros os filmes com um final esperançoso (ou mesmo aberto) do que os que terminam na tragédia: mesmo podendo não consubstanciar-se na morte de um ou mais personagens, de modo algum podemos apontar uma produção ATG cuja última cena não represente um distúrbio qualquer. Esta pode ser uma das razões para existir uma extrema familiaridade e interesse no tema dramatúrgico do shinju (duplo suicídio), partilhado no título de três filmes, sendo que Double Suicide at Nishijin representa a segunda variação. Os outros dois shinju tinham sido retirados da tradição clássica de Monzaemon Chikamatsu e do seu teatro de marionetes, o bunraku. Double Suicide de Masahiro Shinoda, o mais experimental e poderoso da trilogia, materializava o destino dos amantes na figura do kuroko, como se apenas o espectador pudesse estar consciente das forças invísiveis que puxavam o eros de volta para o thanatos; por sua vez, Double Suicide of Sonezaki, realizado por Yasuzo Masumura, servia-se da origem teatral do argumento para descrever com alguma linearidade e tiques melodramáticos o amor proibido de uma cortesã e um rapaz. De modo a contradizer esta tendência clássica, o jovem Yoichi Takabayashi não executaria, na sua terceira película para a ATG, uma adaptação, mas antes uma transposição dos preceitos de Chikamatsu na contemporaneidade. Por isso, Double Suicide at Nishijin actualiza a temática do shinju, partindo de um ângulo diferente para chegar aos mesmos resultados. Veja-se como até  a  poderosa fixação pelo destino chega a ser revitalizada, não através do amor impossível dos amantes, mas pelos poderes sedutores de Yumi, um anjo caído cuja fatalidade nos outros parece desconhecer. A prostituta que se apaixona por homens pela beleza ou fealdade das suas mãos, falha um duplo suicídio forçado pelo seu amante, contagia Kyoto, mesmo quando decide esconder o seu passado e trabalhar honestamente no comércio local. Takabayashi filma o bairro de Nishijin, conhecido pelos caríssimos tecidos de seu nome nishijin-ori, como alguém que descreve um paraíso corrompido. É o outro lado da tradição que se escrutina: os roubos de dinheiro, as falcatruas e negócios obscuros, a relação estéril entre o casal de donos da fábrica de kimono que esconde, da parte da mulher, uma tensão incestuosa com o filho adoptivo. Enfim, os comerciantes ricos de Nishijin podem representar a diferença de classes que Chikamatsu sempre preconizou nas suas peças, porém a euforia amorosa não nasce necessariamente desse confronto. Yumi e o "filho adoptivo" Hiroyuki são dois outsiders e só percebem que o caminho do amor é o caminho da morte quando não têm escolha. Quereria Takabayashi comentar esta modernização do shinju, dizendo-nos que ele não nasce da coragem do amor, mas da consequência directa de um acto de loucura? Nessa cena final, porém, o moderno faz-se tradição quando o cinto do kimono liga o corpo clássico e aprumado de Yumi à aparência 70's de Hiroyuki com o seu casaco de ganga. A plongée dos corpos mortos ecoa a mesma plongée poética do filme de Shinoda e a mesma plongée que Kazuo Kuroki tinha usado anteriormente em The Assassination of Ryoma! São três picados que representam três "casais" que, através da morte, afirmaram a suprema união da vida.



Mourning Recipe (2013) de Yuki Tanada: **
Mourning Recipe é o straight movie de Yuki Tanada, ou se quisermos, a sua película mais inofensiva. A realizadora que iniciou uma carreira virulenta onde a sexualidade dos seus personagens era sempre sinónimo de tumulto interior, virou-se agora para um dos temas mais clássicos do cinema japonês: a perda de um ente querido e as relações em família. Muitos dos realizadores "radicais" acabam por abraçar o classicismo à sua maneira, mesmo que pontualmente, (Takashi Miike tantas vezes na sua carreira, Sion Sono com Be Sure to Share, Takeshi Kitano...) e se as razões dos projectos variam de caso para caso, podíamos dizer que por vezes a abertura ao financiamento pode ser facilitada se a temática for mais universal ou reconhecível pelo público. Portanto, Tanada que escreveu a maior parte dos seus argumentos subjuga-se aqui à adaptação de um romance que também tinha sido uma série de televisão dois anos antes da estreia. Mourning Recipe, assim, ao contar a história de um viúvo (Renji Ishibashi) que recebe a visita de uma pupila da falecida esposa (Fumi Nikaido), destinada a convencê-lo a seguir os passos de uma receita deixada por ela que organiza a festa do quadragésimo nono dia de luto, pretende também criar um tipo de familiaridade com os personagens que passe pela revisão de um certo tipo de rigidez em relação aos assuntos da morte e da família. A celebração do quadragésimo nono dia, o dia em que o espírito desvanece definitivamente do mundo para ser integrado no cosmos, transforma-se numa busca pela memória onde a reconciliação com o passado problemático, mais distante e longínquo, parece ser uma consequência. Veja-se a personagem da filha (Hiromi Nagasaku) que personifica esta dupla reconciliação com o caso extra-conjugal do marido e com a madrasta falecida. Para além do uso inteligente dos flashbacks, algumas vezes figurados no tempo presente, como se fossem "sonhos acordados" do viúvo, Mourning Recipe acaba por ser demasiado extenso, demasiado linear e pacificador para ser uma obra marcante.



Far Away, So Close (2013) de Masahiko Nagasawa: **
Masahiko Nagasawa sempre teve uma presença feminina bastante forte na sua filmografia. Desde a sua primeira longa-metragem, Being There e passando por outros exemplos menos óbvios (The Graduation ou até mesmo Night Time Picnic), as suas narrativas perseguem mulheres de todas as idades que têm de se adaptar a situações não ideais ou conflituosas, demonstrando também nas suas relações com os homens, traços de uma autonomia mais saliente do que nos blockbusters habituais. Far Away, So Close conta-nos o caso estranho de Sakumi que, após um acidente de viação, perde a memória dos seus últimos dez anos de vida, o que equivale a dizer que se tornou numa adolescente de dezassete anos num corpo de uma mulher de vinte e sete. A elipse do acidente transforma o filme na procura de Sakumi pelas circunstâncias reais do sucedido (que podem ou não ter sido forjadas), sempre apoiada pela descoberta do que aconteceu nesse intervalo da memória por uma década. Desde o namorado que reconhece como antigo colega de escola a uma amiga de infância que se encontra num processo de mudança de sexo, Sakumi irá encontrar o que perdeu quando tinha dezassete anos e ver a realidade com os olhos não contaminados da sua perspectiva antes do trauma. Com uma banda-sonora de Shunji Iwai, e com uma direcção de fotografia claramente inspirada pelo realizador que aqui apenas fica confinado às teclas de um piano, Far Away, So Close perde-se um bocado na recuperação do passado da protagonista, ficando muito preso às revelações e ao twist que descobrimos por volta da metade. Nos interstícios, porém, há uma beleza relaxada que não podemos olvidar: os enquadramentos arriscados do barco a flutuar pela lagoa, a comparação da combinatória de cores de Monet, a chuva a cair num corpo pronto a recebê-la, o último plano frente ao sol por entre as ervas...



The Tale of Iya (2013) de Tetsuichiro Tsuta: *****
Por vezes são precisas experiências destas para nos relembrarmos porque é que caímos aos tombos na cinefilia, por que razão cultivamos hábitos de visionamento tão obsessivos quanto vitais e elevámos a tela de uma sala, televisão ou ecrã de um computador ao estatuto de eremitério mental a que sempre chamaremos "casa". The Tale of Iya, pela grandiosidade com que nos apresenta cada fotograma como se fosse um milagre revelado, parece pertencer a uma prática de cinema extinta ou em vias disso. "Já não se fazem filmes assim", diz o carrancudo pessimista que há em mim, "falta-nos coragem". Isto é obra do passado, é magia, porventura nem é deste (ou pare este) mundo. Tanta austeridade formal, tanto cepticismo psicológico são complementados por uma imanência imagética que liberta os sentidos e os projecta para outro domínio de compreensão, onde a imobilidade nasce de um ritmo interior e onde o silêncio é o correlato significativo do facto de o humano não passar, afinal, de um elemento da natureza. A película do jovem Tetsuichiro Tsuta, que é preenchida por imagens, quadros, painéis de uma beleza incessante e muito menos por palavras, partilha este descaramento com todas as obras colossais da história do cinema. Ela cria a sua própria gramática e hermenêutica, catapultando-nos, de possibilidade em possibilidade, para um sentimento recuperado de primitividade do olhar. Não interessa se essa noção do primitivo surge também da organizada oposição entre tradição e modernidade, presente nos episódios da construção polémica do túnel. Na verdade, este é um filme que duvida da própria defesa política que poderia ser extraída dele próprio. Tsuta concorda com o misticismo das velhas comunidades que filma a desvanecer. Elas viram na linguagem um acréscimo desnecessário à impenetrabilidade do mundo natural: para cada frase, mil imagens que podem ser só uma (porque no cinema um plano pode conter mil imagens) e, nesse sentido, as polémicas sociais não são encaradas sem algum distanciamento. Mas estaremos capacitados para reencontrar a primitividade que constantemente nos negamos mas fascina? The Tale of Iya mostra-nos a perspectiva de um citadino desiludido que se entrega à rudeza das montanhas, enquanto os velhos sábios da aldeia (de)caem como as folhas no Outono e a neve chega para desertificar as colheitas de uma vida. A demência calada do avô de Haruna anuncia o poder sagrado da terra. Ficar em Iya significa morrer de pé como as árvores ou desaparecer numa noite de nevoeiro onde carne, sangue e neve deixam de sentir o frio e se derretem num só corpo. Haruna, como nós, face ao êxodo rural praticamente forçado, perde a voz na cidade e resguarda-se no silêncio. Em certo sentido, ela e o citadino transfiguram-se no avô, na casa que resistirá ao vento, quando se encontram novamente nas montanhas. Nesse último plano aéreo (que recorda o final de Eureka) os dois tornam-se herdeiros da sabedoria cruel de Iya, uma sabedoria vedada, construída a partir da repetição e de tudo aquilo que não encontra expressão neste mundo.



Ryuzo and His Seven Henchmen (2015) de Takeshi Kitano: **
Contradizendo a trilogia que levou a sua dimensão autoral ao paroxismo, Takeshi Kitano pôs os pés nesta década com outra trilogia que deu novas roupagens à figura do yakuza. Outrage 1 e 2 eram entradas com imagens velozes, irrequietas, povoadas por uma panóplia de personagens furiosas, cheias de ar nos pulmões que gritavam e coagiam ad nauseam como se a metafísica da morte de um Hana-bi ou Sonatine tivesse sido integralmente substituída por um espectáculo boçal de exercício de poder, onde a última carta a cair era a vencedora. Ironicamente, ao aproximar-se do comercialismo tão desejado pelos produtores assustados com as aventuras experimentais do passado, Kitano alienava mais uma vez os seus fieis seguidores dando-lhes um cinema que eles não queriam ou não estavam preparados para ver. Na senda dessa segunda auto-desconstrução autoral (que chega a atingir uma neutralização formal - isto dava pano para mangas), Ryuzo and His Seven Henchmen não é mais do que o seguimento deste rastilho de pólvora contra a revitalização, em tempos tão exigida, dos yakuza. Talvez Kitano tenha chegado mesmo ao limite das suas capacidades de exportação: não estando inserido na cultura, quem compreende as boas piadas desta comédia que basicamente anuncia a morte (sejamos mais leves: o enferrujamento) de um género cinematográfico? Como é que alguém em Veneza ou em Cannes, mesmo um japonês com vinte e tal anos, consegue rir-se apenas com o cast de mafiosos reformados que são (literalmente!) velhas caras que protagonizaram há trinta ou quarenta anos, os yakuza ou terroristas, enfim, os "enfant terrible" do nosso imaginário? Pouca gente perceberá o cabimento deste capítulo nos dois episódios de Outrage: se os últimos parodiavam a violência desmedida e a amoralidade do jitsuroku-eiga, este filme de reformados num mundo obsessivamente preocupado com tropelias e fraudes financeiras ridiculariza o sentido de justiça social que perpassa toda a estética dos ninkyo. É como se Kitano encenasse uma mitologia em decadência, indo de anacronismo em anacronismo, de casmurrice em casmurrice, para suscitar um humor que nasce dessa exploração algo maldosa da terceira idade como uma idade da impotência, do desprezo e da solidão. Contudo, estas dimensões, pertencendo a uma lógica humorística, estão invertidas e dirigem-se ao extremo oposto: e se os velhinhos arrogantes pudessem "brincar" novamente aos mafiosos, revivendo todo o saudosismo passado, num tempo em que eles, os mafiosos, se metamorfosearam noutra coisa? Neste sentido, a genialidade da premissa de Ryuzo and His Seven Henchmen só é traída pela sua execução. Se há momentos verdadeiramente hilariantes, graças a Tatsuya Fuji e aos seus prazerosos delírios de grandeza, há outros que nos fazem questionar se o argumento não merecia uma segunda revisão. Podíamos, por exemplo, ter tido um final mais digno que levasse a ideia de rebeldia da terceira idade até às últimas consequências mais anárquicas.

08/10/15

Fragmentos de 2015/10/08



Flower and Storm and Gang (1961) de Teruo Ishii: ***
Após quatro anos na Shintoho, que lhe valeram quase duas dezenas de películas, Teruo Ishii viajava para a Toei mas continuava profundamente influenciado pelo filme noir americano como se pode comprovar quando em Flower and Storm and Gang os tons jazzísticos invadem a trilha sonora da película e os signos do Japão tradicional parecem ter deixado de existir: chapéus de gangster, pistolas em vez de espadas, um cartaz de Frank Sinatra num apartamento nova-iorquino a substituir o shoji clássico entre outros tantos sinais óbvios de ocidentalização. Com efeito, a primeira película de Ishii no estúdio apenas fundado em 1957 foi um sucesso e trouxe-nos um Ken Takakura completamente diferente dos papeis que mais tarde viria a desempenhar, ou seja, contrários à rigidez moral do yakuza arquétipo dos ninkyo. Não é que Smile, a sua personagem também com cognome americano, seja um vilão ou até um anti-herói, mas a sua representação muito ligada a uma despreocupação e liberdade de movimentos fornece-nos uma imagem do artista enquanto jovem que é mais do que mera curiosidade. Mesmo quando o assalto ao banco não corre de feição, Takakura parece estar sempre com a situação sob controlo e todos os seus companheiros (os que o traem com a mesma facilidade com que se aliaram) afinam pelo mesmo diapasão. Sempre cool como se nada os abalasse. Talvez Teruo Ishii já tivesse desde muito cedo a intuição certeira que o filme japonês não poderia comportar tais atitudes se não se banhasse nessa estética exportada de filme noir que, por sua vez, transfigurava a identidade e os símbolos nacionais num híbrido moderno entre Tóquio e Chicago. Onze películas da saga Gang foram feitas de 1961 a 1967 e foi Flower and Storm and Gang com a sua despretensão que começou tudo. 



Three Young Samurai (1961) de Kazuo Mori: **
Esta dramatização do Período Sengoku tem, nos jogos relacionais entre figura e fundo, muito em comum com a rarefacção paisagística que encontrámos numa outra película de Kazuo Mori, Advance Patrol. Ambas as obras, a despeito da diferença de época, descrevem cenários contagiados pela aridez da guerra: décors despidos, postos de vigília improvisados e toda a imensidão de terra desocupada que funciona como palco de confrontos a céu aberto onde a habitação (o amor) se torna uma impossibilidade. Se Advance Patrol relatava o processo de organização colectiva que a situação bélica obriga (ao ponto de nunca eleger um protagonista isolado, como se todos os intervenientes fossem membros de uma só entidade), Three Young Samurai decide apropriar-se do fim de três amizades para descrever o retorno retorcido à individualidade, sempre exigida quando a derrota acontece e outras novas guerras se avizinham. Desta forma, a componente mais interessante do filme de Kazuo Mori poderá ser, não os romances e traições algo insuficientes que se vão estabelecendo entre personagens, mas a perspectiva nada redentora da desunião de um pelotão entregue à fatalidade de si mesmo. Assim, duas obras tão semelhantes no fundo acabam por ser a antítese uma da outra nas figuras que elegem.



Tokoku Kitamura - My Winter Song (1977) de Seiichiro Yamaguchi: ****
É costume haver desconhecimento em relação aos "estragos" que o Hachiro Guryu (o "Grupo de Oito" argumentistas que planeou Branded to Kill) viria a fazer na era do pink e do roman-porno. Seiichiro Yamaguchi, que escreveu essa película maldita em 67 juntamente com outros futuros realizadores (Chusei Sone, Atsushi Yamatoya), ultrapassaria os problemas institucionais do mestre Seijun Suzuki e acabaria detido pela polícia, acusado de obscenidade devido ao seu filme Love Hunter em 1972. O julgamento arrastou-se durante anos e, enquanto aguardava pelo veredicto, Yamaguchi inclusivamente chegou a realizar uma sequela do filme proibido, contando a história de uma dançarina que era, como ele, acusada pelas autoridades de lascívia, o que criava uma auto-referencialidade indesejada pela indústria erótica dentro da Nikkatsu que rapidamente o saneou. Face a este impedimento de filmar pela via tradicional, a dos estúdios, e antes de cair na obscuridade total, o realizador dirigiu-se à Art Theatre Guild para produzir aquela que viria a ser a sua terceira e última obra, uma biografia do escritor romântico Tokoku Kitamura. Basta conhecer um pouco o espírito ATG para desconfiarmos do conceito asseado de filme biográfico e não nos fiarmos nas aparências que nos prometiam uma obra mais clássica do que as outras. Quer porque o pronome possessivo do título evoca o autor fora do filme e não o escritor dentro dele, quer porque My Winter Song obsessivamente se foca no declínio da sanidade do seu protagonista num momento em que todos os companheiros parecem abandoná-lo, parece haver uma correlação directa entre o isolamento de Yamaguchi, o seu "inverno" artístico, e a depressão alucinada de Kitamura. Seria curioso estabelecer um paralelo entre a Trilogia Taisho de Seijun Suzuki, composta por Zigeunerweisen, Kagero-za, Yumeji e este Winter Song: ambos os projectos são exercícios fantasmagóricos sem fantasmas, ou seja, onde os humanos são enquadrados num universo decrépito à beira da eclipsação, como se pertencessem a uma era de ouro em extinção que continua fazendo valer-se pela sua negação constante, tal e qual como os espectros. Assim, Tokoku Kitamura, o escritor de uma geração, ao recordar e ser recordado dos seus amores e da sua actividade de rebeldia política, refuta as suas origens e até o mundo que quer pertencer a todo o custo, a literatura. Através de acessos de autêntica substituição de personalidade, Kitamura chegará então a renegar a arte que escolheu para transmitir a sua mensagem, dando passos cada vez maiores para o fim biográfico que conhecemos, isto é, o seu suicídio com apenas 25 anos. Mas a sequência final, consagrada a esse facto histórico inultrapassável, nunca chega a ser representada (quanto muito é subentendida) e é, antes, substituída por um estranho grito de Kitamura para o vento que é muito mais uma declaração de intenções do seu metteur en scène: "Eu ainda estou vivo".



Kabamaru - The Ninja Boy (1983) de Norifumi Suzuki: ***
Norifumi Suzuki fez de tudo no seu tempo: pinky violences estilizados na Toei, um roman-porno diabólico na Nikkatsu, uma quantidade de comédias tresloucadas e até chegou a mergulhar no filme de artes marciais, trazendo para o contexto japonês aquilo que vinha de oeste, de Hong Kong. Kabamaru - The Ninja Boy pertence a uma tendência tardia do realizador em misturar a comédia sem tino com a exuberância dos ginastas e lutadores do clube de Sonny Chiba, um dos primeiros, senão o primeiro, actor japonês a prescindir de duplos nas cenas de acção e que tem aqui uma cameo bastante engraçada. A história de um ninja sem modos que viaja para a grande cidade depois de assistir à morte do avô que queria derrotar, faz uso das capacidades hiperbólicas da linguagem anime (pois a origem de Kabamaru vem exactamente daí) para colorir um mundo absurdo simultaneamente entretido e inconcebível, divertido e disparatado. Desde a voracidade culinária do nosso protagonista, típica de menino selvagem capaz de trocar tudo por uns yakisoba, passando pela surpresa dos dotes andróginos de Hiroyuki Sanada (em linguagem manga diríamos bishonen) e terminando na meta-referencialidade de certas sequências, como aquela hilariante que torna os estúdios de cinema do Toei Kyoto Studio Park num campo de batalha onde prática e paródia de cinema se confundem, provam que este The Ninja Boy não é nenhuma obra-prima, mas a sua extroversão contagiante aproxima-a de um genuíno guilty-pleasure como só os loucos anos 80 conseguiram produzir.



No More God, No More Love (1985) de Toru Murakawa: **
A obsessão de Toru Murakawa pelo arquétipo do anti-herói prossegue nesta misturada confusa entre cinema de género, filme romântico com contornos eróticos e descrição da ascensão e queda de um guarda-costas saído da prisão. Desequilibrado por não conseguir estabelecer convenientemente o seu tom, passando de cenas foleiras de amor a execuções sumárias de personagens, No More God, No More Love consegue ainda surpreender pelo carácter completamente detestável do seu protagonista, uma espécie de psicopata bem parecido com uma ambição desmedida e flutuações de humor e desejo imprevisíveis, até para ele próprio. Quando Murakawa pretende humanizá-lo, através de um amor puro que perde en passant pela dispersão de coisas que vão acontecendo, contradiz os comportamentos ambiciosos e questionáveis antes descritos e tomados como absoluta marca de personalidade. Sem dúvida, o mais interessante aqui é a maneira como o filme cria para si próprio um beco sem saída onde mais uma vez resulta incomportável qualquer lógica. Dos assassinatos à ruína monótona que chega com a prosperidade, No More God, No More Love vive do isolamento das suas cenas e não necessariamente com a conjugação entre elas.



The West Tako Cheerleaders (1987) de Izo Hashimoto: **
No seguimento da série Be-bop High School rodada para a Toei em meados da década de 80, The West Tako Cheerleaders também é uma produção dos mesmos anos cujos personagens, estudantes do secundário, andam à pancada uns com os outros numa procura incessante por fixar aquilo que define a masculinidade. Assim se comprova pela primeira cena, uma espécie de sonho molhado do nosso herói onde se fantasia com as silhuetas do grupo de suporte militar da escola a descer por uma ravina com o sol posto e bandeiras ao vento. O franzino protagonista que só vive com a mãe e as três irmãs deseja ardentemente ser um homem a sério. e por isso olha com veneração para os colegas que, para além de personificarem uma atitude militar (sempre preparada para a guerra) são os verdadeiros homens que ele quer tornar-se. Escusado será dizer que Izo Hashimoto ridiculariza e compactua ao mesmo tempo (o que é estranho) com este travestismo dos fetiches da direita japonesa, fabricando uma comédia que é um objecto cultural curioso, mesmo quando lá para o meio a intriga se acirra e nos seja pedido que levemos um pouco mais a sério este paradigma divertido do homem autêntico que é, todavia, capaz de contradizer a rigidez da postura, dançar e dar show numa discoteca. Espadas de kendo, espadas por desembainhar, dinamites e explosões, não ficar com a rapariga no final para ficar com os companheiros: tudo isto são os "ossos do ofício" dos homens à antiga.



Au revoir l'Été (2013) de Koji Fukada: ***
Tornou-se impossível escrever alguma coisa sobre Au Revoir L'Été sem fazer referência a Éric Rohmer. Qualquer crítica, ou até entrevista ao realizador, insistentemente ressuscita o legado do cineasta francês numa tentativa sempre questionável de contextualizar outras cinematografias mais longínquas naquelas que nos são mais familiares. Contextualizações (ou domesticações) à parte, fica por saber se Koji Fukada realmente deve assim tanto a Rohmer (numa entrevista, porém, chega a compará-lo a uma sombra que está sempre atrás dele) e se mesmo a adopção de um título francófono, uma escolha que partiu dos produtores que toparam, eles próprios, os francesismos evidentes, não foi uma bela jogada de marketing num país onde a França ajuda a vender pois é sinónimo certo de requinte e luxo. Na segunda longa-metragem de Koji Fukada continua a existir uma naturalidade de assinalar que não é nada alheia a tantas coisas que se fizeram fora do domínio Rohmer. Talvez a leveza e despretensão da câmara nos evoque um cinema interessado em cruzar a ficção com os ritmos verossímeis do real e, por uma razão ou outra, sejamos levados a esquecer que os japoneses sempre foram mestres dessa arte. Perpassado por um sentimento veranil justificado pela narrativa, repleta de encontros e "deslocações" (a recém adulta Sakuko que visita a cidade da tia nas férias), Au Revoir L'Été possui também esse sentimento fugaz da experiência temporária, destinada a ser como um intervalo que acaba sem nós próprios nos apercebermos. Todos os habitantes que nos surgem e que povoarão o olhar da adolescente algo passiva estão sujeitos ao crivo da descoberta, como se a câmara nos revelasse, aos poucos e poucos, as suas naturezas, mas sempre vistas na relação uns com os outros. Não me lembro de nenhum plano em que o isolamento de um personagem não passasse logo pela entrada em cena de outro que ou o observa (como acontece no plano mágico em que Sakuko molha os pés na água em frente da timidez fascinada do rapaz, Takashi) ou reage, positiva ou negativamente, ao carácter desvendado (veja-se a hipocrisia do professor de literatura). Nessa interacção é exigido que leiamos os pequenos sinais das atitudes (o que prova um minucioso trabalho de representação), contando sempre com aquilo que não foi dito, mas sugerido no tom, na linguagem corporal, etc. Fukada parece estar igualmente interessado em captar uma certa realidade actual da sociedade japonesa (note-se a referência à situação de Fukushima) sem fazer teses abstractas ou defesas acaloradas da sua posição. Nesse acto do realizador que se apaga e dá a palavra aos sujeitos que filma, podemos ficar, paradoxalmente, mais atentos ao que o rodeia numa forma de apreender o mundo que é mais discreta mas não menos próxima de uma experiência directa de contacto.



Strobe Edge (2015) de Ryuichi Hiroki: 0
Ninako ama Ren que ama uma modelo mais velha. Takumi ama Ninako que continua a amar Ren, mesmo sabendo que este está comprometido. Takumi amava Mao que também tinha sentimentos por Ren e por causa disso a relação entre os dois amigos nunca mais foi a mesma. Para esta telenovela replicar a estrutura do poema "Quadrilha" de Carlos Drummond de Andrade faltaria um personagem desafectado que não amava ninguém mas casaria no final enquanto todos os outros ficavam de mãos a abanar, vítimas do rendilhado amoroso em que tinham participado involuntariamente. Na verdade, Strobe Edge mostra-se incapaz de ir para além da mais corriqueira intriga entre adolescentes, repetindo, uma e outra vez, cenas de ciúmes, problemas, mal-entendidos advindos de triângulos amorosos e confissões de amor que nos reenviam a vergonha alheia de muita imaturidade das nossas e outras vidas que preferimos olvidar (ou recalcar). Talvez o maior obstáculo para se retirar qualquer coisa daqui seja ainda outro: o facto de Ryuichi Hiroki não ter quase nada para mostrar que não seja este "jogo das cadeiras" sentimental que se consubstancia apenas num interesse coscuvilheiro de saber quem vai "acabar" com quem e quem vai ficar com quem. Os personagens simplesmente não existem fora do romance, portanto é-nos impossível estabelecer uma relação com eles fora das contingências amorosas e das confissões atrapalhadas. Sabemos que não devemos pedir a um filme baseado num manga que seja Shakespeare, porém não é fácil aguentar com este lirismo adolescente que nos faz ver constrangimento onde era suposto ver beleza.



The Curtain Rises (2015) de Katsuyuki Motohiro: ***
Existe um género relativamente recente no cinema japonês que consiste naquilo que costumamos descrever como "uma juventude, um interesse". Na verdade, este "interesse" de que falamos é produto do sistema educacional nipónico que não só obriga desde muito cedo a inscrição em actividades extra-curriculares, organizadas numa variedade inacreditável de "clubes" oferecidos pelas escolas, como é esperado que o empenho nessa ocupação seja o mesmo do que em qualquer outra disciplina. Por isso, não é nada estranho que exista um rol impressionante de películas onde a juventude é forçada a organizar-se em virtude de um ofício e consequente competição que terá de disputar, muitas vezes auxiliada por um mentor excêntrico: natação (Waterboys), volleyball (Oppai Volleyball), baseball (Gyakkyo Nine), ping pong (Ping Pong), futebol (Shoot!), a lista é infindável e continua. Há, porém, um sub-género deste género que incide sobre um grupo de protagonistas femininas e na maior parte dos casos esses filmes são menos cómicos, menos joviais e mais interessados em captar um certo espírito nostálgico, irrecuperável dos anos de secundário. Swing Girls e Linda Linda Linda, por exemplo, não eram memoráveis pela associação à música (no primeiro caso, uma brass band de jazz, no segundo um grupo de pop rock), mas antes pelo modo realístico como construiam raparigas com personalidade, prescindindo completamente dos namoricos e quejandos. Schoolgirl Complex e Cherry Orchard, duas películas que abraçam a representação escolar (a radialista em Complex, a teatral em Cherry) eram exercícios arrojados onde um certo cariz homoerótico emergia do contacto exclusivo entre estudantes de "all girls schools". O novo filme de Katsuyuki Motohiro, famoso pela saga ultra-comercial Bayside Shakedown, vem na senda destas produções e volta a buscar a arte dramática para documentar as peripécias de um clube de teatro feminino de segunda que encontra fortuitamente uma nova professora que em tempos tinha sido uma diva da representação escolar. Não há aqui nada de inovador, a começar pela relação com a mentora que modifica comportamentos e hipoteticamente levará as alunas à vitória do torneio nacional de representação, porém não é difícil elogiar as prestações das actrizes (a representar as dificuldades de ensaio), tão naturais, tão palpáveis que chegamos a duvidar a existência da câmara. The Curtain Rises interessa-se por tudo aquilo que não é o sucesso estrito. Podemos dizer que a competitividade aqui apresentadas é uma mera desculpa para o grupo dramático continuar a existir e, juntas, as colegas conseguirem perpetuar o sonho da juventude que lhes (e nos) escapa por entre os dedos. Inofensivo e charmoso.



Kabukicho Love Hotel (2015) de Ryuichi Hiroki: ***
Comparar Strobe Edge a Kabukicho Love Hotel, dois filmes lançados no mesmo ano por Ryuichi Hiroki, revela-se uma tarefa difícil, pois de maneira alguma parecem ter sido obra do mesmo realizador. A primeira película insuflada de uma energia juvenil, até na montagem que chega a dividir o ecrã ao meio para juntar os pombinhos, nada tem que ver com o mergulho da segunda na vida noturna de Shinjuku, especialmente quando é usado um registo quase documental na representação das ruas de Kabukicho que não escondem as casas de massagem duvidosas, os bares de hosts e hostesses e os famigerados hotéis do amor. A narrativa está especialmente atenta à multiplicidade de histórias que se concentram num desses típicos love hotel onde as relações sexuais raramente têm a ver com amor (como o nome muito inocentemente indica), mas com negócios obscuros, trocas de favores, prostituição encapuzada (pois ela é ilegal no Japão) e até filmagem das infames produções AV (literalmente traduzido por adult-video). O jovem e cada vez mais respeitado Shota Sometani faz de intérprete neste verdadeiro albergue espanhol em que as vidas duplas ficam a nu e todos os personagens se confrontam com qualquer coisa ligada à corrupção. Volto a chamar à atenção para as qualidades da câmara de Hiroki que capta com dotes de pintor da vida moderna a energia fascinante do maior bairro vermelho de Tóquio enquanto nunca deixa de mostrar retratos bastante emotivos de vidas marginais (ninguém está nessa indústria por prazer). Tirando um ou outro pormenor como por exemplo a música completamente desfasada da disposição do filme, Kabukicho Love Hotel é um sólido mosaico de personagens sendo que a interferência entre elas vale até mais do que cada uma, isoladamente.