22/06/15

Fragmentos de 2015/06/22



The Gangster VIP (1968) de Toshio Masuda: ***
Ao assistirmos a entrevistas recentes com membros que trabalharam na Nikkatsu nos anos 60, frequentemente um nome impõe-se aos outros todos no que diz respeito à popularidade das suas películas: Toshio Masuda. Com efeito, Masuda era o realizador que se encontrava no topo da cadeia alimentar da Nikkatsu, seguido de realizadores como Ko Nakahira ou Koreyoshi Kurahara e acabando no mais baixo dos escalões com (o hoje superior a eles todos) Seijun Suzuki. O que significava estar no cume da pirâmide dos realizadores, perguntamo-nos? A possibilidade de trabalhar com as estrelas do estúdio (nomeadamente Yujiro Ishihara), maiores orçamentos e, normalmente, um período maior de filmagens. Claro que a obra de Masuda, devido ao seu carácter artesanal, é gigantesca (de 1958 a 1968 lançou 52 filmes exclusivos da Nikkatsu) e o realizador era inclusivamente conhecido por sempre entregar os seus filmes a tempo e com generosas receitas de box-office. Era, portanto, um conhecedor das fórmulas que resultavam perante o público e, na nossa opinião, era também o cineasta capaz de extrair mais emotividade e entusiasmo da tradicionalidade narrativa a que se obrigava e que, em determinados departamentos e sem grandes revoluções, variava. Se não podemos falar de variação total em The Gangster VIP, película yakuza reminiscente de tantas outras quanto à estrutura, podemos referir o cepticismo que reina no argumento, na atmosfera urbana e na falta de valores que percorre o mundo decadente dos mafiosos, tornando-a mais um caso típico de um presságio de fim de era. Masuda foi até bastante inteligente para iniciar The Gangster VIP com o tipo acto conclusório que terminaria o mais banal dos ninkyos: a defesa e a escolha da obrigação moral perante o clã, um apunhalamento a um "irmão" e o aprisionamento do nosso herói, Goro Fujikawa (interpretado por Tetsuya Watari). Três anos após esse incidente e depois de cumprida a pena, Goro regressa à cidade e tudo parece diferente: a mulher do seu irmão de sangue trabalha agora num bordel e mesmo a sua apaixonada que jurava amor eterno quando este era levado pelas autoridades, casou-se com um trabalhador às direitas, deixando-o à sua sorte junto do clã inimigo que se quer vingar a todo o custo. Retomando as raízes do género, assistimos depois ao surgimento de um amor inesperado com outra rapariga, a princípio evitado por Goro que está consciente da perigosidade da sua situação (um belo plano metafórico dessa incompatibilidade do casal coloca no fundo dois comboios que vão em direcções diferentes, mas todavia cruzam-se) e a dizimação progressiva do clã e amigos do nosso herói, o que desencadeia a tão esperada e derradeira vendetta que tem o vilão como vítima impotente. Destacamos duas cenas em especial: essa morte muda no clube de jazz, apenas sonoramente acompanhada pela cantora que, sem saber o que se passa nos bastidores, faz o seu número e os fantasmas que nos assaltam quando a vingança está cumprida. Ferido, ziguezagueando pela noite como um zombie, Goro é mais um gangster trágico que colheu os frutos de uma vida imperdoável e nefasta, a via do yakuza.



Love and Faith (1978) de Kei Kumai: ***
Ogin-sama, título original que tem como subtítulo Love and Faith (amor e fé: duas emoções subjectivas capazes de descrever o conturbado período Sengoku), foi a primeira de duas obras kumaianas livremente inspiradas na escorregadia diplomacia do século XVI, remetendo sempre para duas figuras incontornáveis: Toyotomi Hideyoshi, o feroz unificador do Japão e o mestre de chá e seu conselheiro espiritual, Sen no Rikyu. Ao contrário do posterior Death of a Tea Master que examinava com tiques de policial essas duas personalidades históricas e o fim trágico que se abateu no final da sua relação, Love and Faith escalpeliza com pormenor as convulsões dessa era politicamente dividida e contrabalança as inclinações arrogantemente autocráticas de Toyotomi com um amor proibido entre Ogin, filha do mestre de chá, e Ukon, um nobre recentemente convertido que vê banida a sua religião, o cristianismo. Relato de uma era instável dilacerada entre a recusa e a aceitação dos descobrimentos europeus, Love and Faith explora, portanto, a duas velocidades, por um lado, o rumo público de uma liderança expansionista, verdadeiramente dominada com pulso de ferro (Toyotomi interpretado pelo carismático Toshiro Mifune encarna bem o lema dos grandes ditadores: "quem não está a favor, está contra") e, por outro, a força privada de uma mulher incapaz de se vergar perante a autoridade, afirmando o seu amor e a sua honra até às últimas consequências. Podemos mesmo dizer que Ogin desempenha aqui um Sen no Rikyu feminino, no sentido em que a tenacidade e a perenidade dos seus valores não encontram barreiras ou constrangimentos e o avanço da sua vontade (até à morte) surge como a maior das ousadias. Basta, portanto, ver quem assinou o argumento para levantar o véu da dúvida: o mizoguchiano Yoshitaka Yoda que aqui fala outra vez de uma mulher maior do que a história, afogada no sacrifício da sua teimosia feminina. Um retrato mizoguchiano sem Mizoguchi.



The Killing Game (1978) de Toru Murakawa: ****
De lentes embaciadas, Shohei Narumi fuma um cigarro noturno frente à janela da sua próxima vítima. Por esta altura já conhecemos o sangue assassino que corre nas veias do incrível hitman e a missão que abre esplendidamente The Killing Game não podia ser mais emblemática do silêncio duro que caracteriza o seu método imperdoável. Depois de matar friamente o alvo pretendido usando a secretária e presumível amante deste como escudo, Narumi prepara-se para se desfazer da única testemunha daquele assassinato junto às docas desertas e azuis da aurora. "Na cabeça não", diz-lhe a viúva quando vê o revólver apontado ao seu cérebro; "eu quero morrer bela". Talvez surpreendido pelo eco misterioso dessas palavras o atirador baixa a arma e poupa a vida daquela mulher fatal que sabe demasiado e seguramente virá a causar-lhe problemas no futuro e assim acontece cinco anos depois num jogo letal entre a falsa irmandade de dois gangues, sedentos pela mútua anulação e conquista. No segundo capítulo da Trilogia Game, Yusaku Matsuda inclusivamente dá uma de Toshiro Mifune e replica por breves momentos o papel famoso de Yojimbo, armadilhando duplamente quem o contrata e complicando as coordenadas de ambas as facções de mafiosos, como quem não quer a coisa. Mas, se na película de Akira Kurosawa a tensão de ser descoberto e a astúcia do protagonista eram o segredo do seu sucesso, em The Killing Game rapidamente as máscaras caem e o caos descontrolado se origina. Nessa altura, percebemos outra vez como é despretensioso o estilo de Toru Murakawa já que a mestria e total controlo dos seus planos é digna de estudo atento mas facilmente poderá ficar dissolvida nas idiossincrasias mais comuns de um filme de acção. São, portanto, as imagens que nos resgatam, é a presença inclassificável do cativante Yusaku Matsuda que nos põe a aplaudir de pé, é portanto o segmento final que fecha o círculo. Nessa despedida sangrenta da mulher reencontrada (absurda e à margem de estudos de personagem), nessa orgia de violência filmada num só take e que é, sem exageros, das cenas de acção mais marcantes e mais inesquecíveis do cinema japonês.



The Execution Game (1979) de Toru Murakawa: ****
Dois filmes separaram The Killing Game de The Execution Game: no ano de 1979 a consecutividade da trilogia era intervalada por Dead Angle e The Resurrection of the Golden Wolf, o último dos quais também protagonizado pelo inclassificável Yusaku Matsuda. Eram duas películas de hiato menos inspiradas, quiçá despoletadas por obrigações contratuais, que apesar de tudo traziam algo de relativamente novo ao cinema de Toru Murakawa. Se Shohei Narumi até aqui era um genuíno anti-anti-herói como o classificámos algures (e seguindo a regra tradicional da lógica, uma dupla negação equivale necessariamente a uma afirmação), sempre com um pé na maldade mas sempre sorridente o suficiente para aceitarmos as suas escolhas como um herói ainda assim invulgar, os protagonistas de Dead Angle e Ressurection, por seu turno, eram viciosos até ao tutano, inclusivamente num dos casos, roçavam uma espécie de apatia monstruosa que ficava sempre à margem de interpretações. Depois de assistir ao fechamento da trilogia, podemos afirmar que Execution Game bebe essas influências do anti-herói inquebrável com menos nuances psicológicas, munido de uma indiferença radical e, portanto, afigura-se como o capítulo mais negro dos três. Narumi é aqui um espectro entre os mortais aniquilados e mesmo a atmosfera que o circunda, graças à cinematografia ominosa e cinzenta, longe do sol pontual dos outros filmes, tem escrita morte, solidão e desolamento por toda a parte. Podemos usar a cena inicial como exemplo da abstração lúgubre que The Execution Game alcança, distanciando-se até dos cânones mais reconhecíveis do filme de acção que arrisca pouco: Narumi começa encarcerado, drogado, dispara contra os fantasmas da sua alucinação e recebe pistas em voz-off com uma luz cegante apontada aos olhos. Nunca vemos o vilão, só aparições sombrias. Desta vez o trabalho consiste em assassinar um homem da sua espécie, um hitman em vias de se "reformar". Uma cantora de jazz une o passado imediato de Narumi ao passado mais distante do hitman e, mais uma vez, podemos antever o desfecho sangrento e anárquico que conserva os traços mais gerais da série. Mas aqui, como em todo o lado, o que conta é a maneira como as imagens se encadeiam e nos transmitem sensações e estados, eu diria, disposicionais. Nesse departamento, The Execution Game é mais um marco formal de méritos indeléveis: os planos-sequências de tiroteios (três aqui!), o modo como os zooms e as pans são usadas como perpetuação do take subdividido em outros pequenos planos, a música de Yuji Ohno mais melancólica e experimental do que antes, enfim, a corporeidade fantasmagórica de Yusaku Matsuda que aqui representa o elo que faltava perscrutar entre o entretenimento da Trilogia Game e a interpretação surreal, pessimista, esquelética de The Beast To Die, realizado apenas um ano a seguir, em 1980.



Here Comes the Bride, My Mom! (2010) de Mipo Oh: **
Tsukiko vive sozinha com a sua mãe, Yoko. Certa madrugada chuvosa, Yoko chega a casa embriagada e traz consigo um rapaz bastante mais novo do que ela de seu nome Ken. O convidado, não menos bêbedo, fica aterrado no chão e, após essa noite agitada, fica a viver na casa das duas mulheres sem ter havido qualquer preparação ou aviso. O mundo de Tsukiko parece desabar aos poucos quando Yoko confessa, ao fim de um dia, que está noiva de Ken e que o casamento é para breve. Here Comes the Bride, My Mom!, como o título explicitamente deixa prever, é um filme que trata o relacionamento conturbado entre progenitora e descendente e abre com um punhado de questões pertinentes (qual o direito de uma mãe reconstruir a vida quando ainda está a viver com a filha?) que não deixam de explorar comicamente os limites ténues da hospitalidade, ou melhor, quando esta dá lugar à intrusão e ao fim da privacidade. Podemos dizer que a cineasta Mipo Oh começa o seu filme da melhor forma, demarcando o carácter caricato de tal situação e de Yoko, uma quarentona viúva que parece demasiado descontraída relativamente à modificação de vida que obrigará a filha a passar. Relacionável começa, pois, por ser Tsukiko, arauto da geração das segundas e terceiras famílias, que obviamente reage mal às mudanças impingidas e até à simpatia evidente do intruso. Claro que à medida que assistimos ao processo de habituação forçado, percebemos que terá de chegar o momento da conivência e, infelizmente para o percurso que o filme estava a construir, pensamos que a solução escolhida, se bem que convincente e sóbria, força por si só a aceitação de tal maneira que não conseguimos obter totalmente o processo de desenvolvimento de personagem que desejaríamos. Com boas interpretações e bons momentos, se tivesse ido por outro caminho no terceiro acto, Here Comes the Bride, My Mom! podia ter sido um clássico.




Tokyo Slaves (2014) de Sakichi Sato: 0
Durante a década passada, Sakichi Sato ficou conhecido por assinar os argumentos de Ichi the Killer e Gozu, dando à estética miikiana contornos delirantemente cartoonescos, por um lado, e surreais, por outro. Admirador confesso de David Lynch (e o que é Gozu senão uma variação alucinada dos já por si alucinados ensinamentos do mestre americano?), Sato, porém, não encontrou grandes felicidades na passagem para a cadeira de realizador. A título de exemplo: não recordamos Tokyo Zombie, a sua primeira longa-metragem, como um filme marcante, mas antes marcado por um ritmo bocejante e uma estranheza, tanto na premissa como na execução, que nunca chegava a cumprir o que prometia. Tirando um ou outro caso pontual, a carreira do inesperado argumentista tornado realizador virou-se para a adaptação de mangas para o grande ecrã e Tokyo Slaves traduz mais um caso onde as duas linguagens não convivem bem juntas. Esta proposta algo adolescente conta a história de dois irmãos mais 21 jogadores e um engenho futurista que, quando colocado na dentição, tem o poder de escravizar a mente e o corpo de quem perde o desafio proposto (qualquer situação que eleja um vencedor e um vencido, um mestre e um escravo). Esta componente absurda não é nada inédita para Sato (por exemplo, em Zero Man vs. The Half-Virgin tinha filmado as aventuras de um jovem que, sempre que tinha uma erecção, via escrito na testa de qualquer pessoa o número de vezes que tinha tido relações sexuais) porém em Tokyo Slaves nenhum mérito bizarro constrói grande coisa e facilmente tudo se esfuma na gratuitidade sem piada ou génio. Os personagens são determinantemente irritantes, os jogos, apesar da tensão nas primeiras vezes, são pouquíssimo complexos (pedra-papel-tesoura, a sério?) e mesmo a ideia da escravatura induzida podia ter sido bastante melhor explorada se os lugares comuns dessa linguagem manga, por vezes paródica, por vezes seríssima, não se imiscuíssem constantemente nas interpretações e nas soluções de argumento confusas e maniqueístas. Quando o velho inventor da máquina surge, trazendo consigo uma última metade exasperante e sem tino, não restavam quaisquer dúvidas quanto ao fracasso de Sato porque a parvoíce não é sinónimo de arrojo.



Little Forest - Summer/ Autumn (2014) de Jun'ichi Mori: ***
O projecto Little Forest desafia, sem causar mossa ou iniciar discussões académicas, o próprio conceito de cinema, ou melhor, do filme visto em sala. Composto por duas longas-metragens, sendo que cada uma delas foi posteriormente dividida em dois capítulos descrevendo, no total, as quatro Estações do ano, a razão do desafio prende-se com o carácter self-contained dos segmentos e a sua quase inexistente articulação: ao ponto de, a meio deste Summer/Autumn, quando passamos do Verão para o Outono, haver uma cisão entre episódios, introduzida pelos créditos, a equipa técnica e, de seguida, reiniciada através de um outro genérico como se tivesse acontecido uma falha na projecção e recomeçássemos de novo num outro filme qualquer. Para além dessa escolha singular que demonstra a estranheza de enxergarmos a estrutura episódica da televisão sendo apresentada ipsis verbis como cinema, podemos ainda referir a estrutura não menos repetitiva e estanque que está no cerne de cada Estação vivida por Ichiko, uma jovem rapariga que regressa à sua aldeia natal e subsiste somente graças àquilo que produz: sete pratos para os cinquenta e tal minutos de Verão, sete pratos para o mesmo tempo no Outono. O modo de fabrico, a preparação, a busca pelo produto ideal e a explicação mais lata de como a Natureza funciona e como a podemos aproveitar são os ingredientes para a receita de Jun'ichi Mori representar as duas Estações auxiliando-se da culinária e dos seus processos de selecção e aprendizagem, optando por fazer da sua personagem uma misteriosa e solitária intérprete de um certo didatismo associado ao milagre do campo e da agricultura de subsistência. Talvez o maior desafio que Little Forest nos coloca seja precisamente esse: o de consumirmos imagens que estão completamente relacionadas com os programas de cozinha que abundam pelas nossas televisões e termos de as elevar ao estatuto de cinema por obrigação formal. O esforço pode até nem ser bem sucedido mas é seguramente recompensado graças à descontração reinante nas imagens e nessa visita aos cantos perdidos do mundo onde é possível estar sintonizado com uma vida que possibilita a meditação na feitura dos pequenos actos (caminhar, cultivar, cozinhar, comer). Nesses estados de relaxamento e respiração a fundo, potencializados pela iluminação natural e pelos roteiros gastronómicos que ilustram a Estação veranil e outonal, talvez percebamos a falta de presunção do próprio projecto encarado como unidade homogénea, em suma, a falta de compromisso quanto à velha arte do cinema.

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