09/06/15

Fragmentos de 2015/06/09



The Most Dangerous Game (1978) de Toru Murakawa: ****
O lendário (não há outro adjectivo para ele) Yusaku Matsuda protagoniza o primeiro capítulo da Trilogia Game, apelidada assim devido à utilização da palavra "jogo" (yugi em japonês, game em inglês) em cada um dos três títulos mas também porque nela contamos com a presença do mesmo personagem, o hitman Shohei Narumi e o mesmo realizador. The Most Dangerous Game, que pretende ser o capítulo introdutório para o que virá, abre na aurora da cidade em zoom out, focando num canto corpos mortos e manchetes de jornal. A banda-sonora incrível de Yuji Ohno coloca-nos logo na pista que ansiávamos: o filme de Toru Murakawa será maioritariamente um exercício de estilo tão demarcadamente desligado de uma lógica realista no argumento e nas motivações que só pode contrabalançar a verossimilhança ao nível formal, nos esplêndidos movimentos de câmara e em escolhas de realização audazes (veja-se o tiroteio num asilo psiquiátrico filmado em plano sequência durante três minutos) que até podem surpreender pelo equilíbrio efectuado entre tensão e descarga (a câmara dança com os zooms e recria o movimento e a configuração dos enquadramentos dentro do estatismo do plano). Os contrastes e as contradições são aqui obrigatórias e a prova maior dessa afirmação reside no próprio anti-anti-herói Shohei Narumi. Por mais questionáveis que sejam as suas acções, é no equilíbrio entre inapetência e perfeccionismo, extrema confiança e patetice questionável que nos rendemos a um actor dono do seu personagem em cada segundo e que visivelmente foi feito para o vilão bondoso que interpreta. Yusaku Matsuda inaugurou uma escola de personagens sem continuidade no cinema, mas que viram o seu dealbar na indústria manga/anime (o que seria do Kenshin Himura ou Vash Stampede, entre tantos outros, sem a postura decomposta de Matsuda, sem o assassino que vive no homem sem talento?) e Shohei Narumi em The Most Dangerous Game é o pai de uma geração. Finalmente, quando no terceiro acto a suspensão de juízo se torna obrigatória e tudo se resolve com uma brutalidade tão in your face que se torna prazerosa, só podemos aplaudir este genuíno produto dos anos 70, à primeira vista datado mas que vence qualquer filme de acção feito hoje. Venham os próximos!



The House of Hanging (1979) de Kon Ichikawa: ***
The House of Hanging on Hospital Slope, iniciado em 1975 nas revistas hebdomadárias, seria provavelmente o último caso escrito de Kosuke Kindaichi, o habilidoso detective. O romance posteriormente compilado em 1977 quebrava 14 anos de hiato do septuagenário Seishi Yokomizo que retomava, com algumas nuances, a forma de literatura policial que o tornara famosíssimo numa era onde as adaptações cinematográficas da sua obra inundavam os cinemas e os leitores exigiam mais material fresco. Apesar de ainda ter escrito uma última obra em 1980, um ano antes de morrer, Yokomizo tencionava começar com as despedidas em The House of Hanging on a Hospital Slope e, consequentemente, quando cedeu os direitos para Kon Ichikawa terminar a sua "pentalogia" kindaichiana, as intenções não poderiam ser diferentes. Percorre nesta adaptação, The House of Hanging, uma nostalgia de fim de era que não pode ser alheia ao espectador que acompanhou atentamente os outros episódios da saga. As situações  e os personagens surgem a uma luz ligeiramente diferente: logo no início, uma cameo inesperada do próprio autor conversando com Koji Ishizaka dentro do personagem Kosuke Kindaichi lança o mote. Ambos no interior de uma cena anacrónica (com Yokomizo vestido à anos 70 num universo conhecidamente anos 20) e auto-referencial (com uma familiar na sala a relembrar o universo criativo do autor frente ao personagem), falam sobre uma viagem derradeira até aos Estados Unidos. Kindaichi, de seguida, dirige-se a uma loja para lhe tirarem uma fotografia de passaporte, talvez para escapar ao Japão asfixiante e rural que sempre encarou nos seus difíceis casos e cujas relações terminam sempre com mãos vermelhas de sangue. Mas, enquanto espera pela revelação da fotografia, surge um caso que lhe esbarra o caminho e a despedida fica adiada por mais uns momentos. É caso para dizer que The House of Hanging apresenta a mais intrincada e a mais negra de todas as adaptações cinematográficas do detective, não mudando a obsessão habitual do autor por famílias amaldiçoadas mas introduzindo certos twists estimulantes. Mesmo o defeito habitual dos outros filmes, isto é, o facto de sabermos desde muito cedo quem é o criminoso, fica aqui parcialmente solucionado devido aos três ou quatro suspeitos que confundem os possíveis motivos e a credibilidade dos assassinatos. Se não ficamos impressionados quando nos é revelado o criminoso (retomando também uma velha tradição de Yokomizo...), não podemos dizer que o tenhamos visto desde o princípio e muitas vezes a dúvida se instalou. No meio de uma trama complexa com um passado ainda mais macabro do que o habitual, Kindaichi revela a sua disposição sorumbática mais do que em qualquer outra obra. Se ele chega a reconhecer a compaixão que desprende o crime, o ponto alto da sua mágoa acontece quando assiste sem expressão ao (muitas vezes repetido) suicídio do seu autor. Com o chapéu na cintura, olhando para baixo como um fatalista, vira as costas e desaparece fora de plano. Foi para a América, foi para o nunca mais.



Letters from Kanai Nirai (2005) de Naoto Kumazawa: **
A primeira longa-metragem de Naoto Kumazawa, após experimentos que foram do V-Cinema ao filme omnibus, ecoa o espírito de Shunji Iwai numa altura em que a carreira do (ainda) jovem mestre começava a atravessar um bloqueio artístico, mais concretamente devido ao falecimento precoce de Noboru Shinoda, o seu lendário director de fotografia. Mas voltemos às influências de Letters from Kanai Nirai: por um lado, temos a presença de Yu Aoi no papel principal, actriz praticamente descoberta por Iwai e que configurou uma finura e sobriedade dramática poucas vezes repetida em intérpretes da sua geração e por outro, e esta é a característica que mais sobressaí, a fotografia enevoada, flutuante e filtrada, capaz de ligar os entes filmados ao seu meio (natural ou urbano) parece ter como inspiração confessa o trabalho do já referido Noboru Shinoda. De facto, Naoto Kumazawa serve-se das paisagens idílicas de Okinawa para contar a história de Fuuki, uma jovem que vive com os seus avós e que não sabe da mãe desde muito pequena. O único modo de entrar em contacto com ela é feito através de cartas anuais, recebidas mas não respondidas, talvez por causa do avó que, por uma razão a descobrir somente no final, as guarda antes de serem enviadas. Fuuki, fascinada com uma fotografia antiga com a mãe desaparecida, deseja também ser fotógrafa e sai da ilha tropical para tentar a sua sorte na cidade enquanto procura pelo paradeiro da mãe. Sem querer estragar o final, pode-se dizer que Letters from Kanai Nirai relata emotivamente a perda de uma adolescente à procura dos seus laços e das suas origens com a imagética sensível de um seguidor de Shunji Iwai. Outro estilo teria dificultado o visionamento, porém Kumazawa juntamente com Yu Aoi capturam alguma magia silenciosa principalmente quando Okinawa é filmada.



Mt. Tsurugidake (2009) de Daisaku Kimura: **
Do conhecido director de fotografia Daisaku Kimura chegou-nos em 2009 a sua primeira tentativa na cadeira de realizador. O filme, baseado no romance homónimo Mt. Tsurugidake, conta-nos a história de um cartógrafo, Yoshitaro Shibasaki, enviado pelo exército imperial na primeira década do século passado para subir ao cume inexplorado da Montanha Tsurugi (com uma altitude de quase 2.000 metros) e documentar o território adjacente auxiliando-se e criando estações de triangulação. Contando com o apoio de Chojiro, um conhecedor inato da região, Shibasaki reúne a "Unidade de Levantamento Geográfico" para levar a cabo a sua missão topográfica mas encontra concorrência num grupo de alpinistas inspirados por técnicas de escalagem ocidental denominado "Clube japonês de Alpinistas" que tenta conquistar as alturas íngremes antes dos nossos heróis. Kimura, aproveitando a sua experiência passada como director de fotografia, beneficia do cinemascope para distender as paisagens avassaladoras do topo das montanhas, filmando a perseverança dos exploradores e fazendo sempre relembrar a sua fragilidade quando contrapostos à grandeza natural que permanece à espera de ser superada. Neste sentido, para além da narrativa simples, mas aventureira (quiçá demasiado simples para ser realmente marcante), aqui o interesse principal será a maneira como o mundo natural está captado na fotografia cuidada: tempestades de neve, chuva, vento e sóis vistos por entre as nuvens deixam-nos a pensar sobre as relações entre homem e meio e com frequência vislumbramos nesse confronto ou coexistência uma subtileza e uma suavidade que está também presente na banda sonora "clássica" que vai de Bach a Vivaldi.



Be My Baby (2013) de Hitoshi Ohne: ***
A segunda longa-metragem de Hitoshi Ohne, realizador mais experiente na televisão do que no cinema, não poderia ser mais inesperada. Após o juvenil e humorístico projecto do pequeno para o grande ecrã,  Love Strikes, que relatava a primeira paixão de um repórter cultural por uma colega comprometida, Ohne aceitou a proposta do cineasta e produtor Masashi Yamamoto (lembram-se desse exercício desolado que era Carnival in the Night?) para mergulhar em territórios mais pessimistas e adaptar a peça não menos negra de Daisuke Miura sobre os relacionamentos de nove jovens adultos precários em apenas quatro locais (os seus quartos), com um orçamento apertado e um prazo de filmagem muito limitado (diz-se que as rodagens duraram apenas quatro dias). O resultado é francamente inspirador. Isto deve-se à realização não comprometida de Ohne, ao argumento explosivo de Miura que traça a hipocrisia e o turbilhão confuso dos valores e atitudes não esclarecidas que norteiam os namoros de uma certa franja social e, finalmente, as prestações dos quase inexperientes actores - talvez a maior surpresa acabe por ser como nos afeiçoamos não à índole, mas à gradual descoberta da podridão ética dos visados. Be My Baby, apesar de poder ser visto como comentário social a uma tribo urbana japonesa caracterizada por jovens desempregados, marginais, sem educação superior e com uma indumentária muito reconhecível, ganha se superarmos essa especificidade e nos concentrarmos na dimensão mais geral dos relacionamentos, ou melhor, na forma como os relacionamentos aqui são tratados (como confronto de perspectivas fechadas e não como possibilitadoras de diálogo). Não podemos fechar os olhos ao papel das mulheres nesse turbilhão do amor, entes confinados à humilhação, à obediência ou a uma transgressão que se limita a ser amante, factos que só são alterados quando elas tomam decisões irrevogáveis. Os homens, à excepção de um caso isolado e outro mais discutível, vivem do poder que exercem sobre as mulheres e dos julgamentos que delas fazem: um namorado controlador que parece nunca estar contente com a devoção da cara metade, o seu irmão que desenvolve uma teoria inacreditável sobre a infidelidade fiel (pode trair a namorada porque a ama?) e ainda outro franzino personagem que usa a simpatia e a paixão de uma rapariga menos atraente para tratá-la como uma serva, aproveitando os comentários nefastos dos seus amigos para dar força ao seu comportamento vil. Be My Baby serve-se ainda da montagem para fazer raccord entre os diferentes quartos e as conversas cruzadas, solidificando os diversos comportamentos e diagnosticando-os a uma só luz, o que nos fornece torrentes furiosas de diálogos (extra espaciais) e momentos unificados de crítica cerrada como se todos os personagens fossem apenas um. Podemos questionar o cabimento da revelação do final (que poderá tornar incoerente certas cenas passadas relativas a uma personagem), mas não há dúvida que esta é uma película audaz, quase vanguardista que faz de muito pouco, bastante e que, finalmente, parece condenar as relações entre homens e mulheres a um redemoinho que acaba sem solução num confronto de perspectivas surdas. Uma revelação.



0.5 mm (2014) de Momoko Ando: **
A terceira idade nunca foi uma temática inédita no cinema japonês e nos nossos dias ela surge com uma pertinência ainda maior, pois inevitavelmente as sociedades contemporâneas, devido ao aumento da esperança média de vida e ao consecutivo decréscimo da natalidade, encontram-se numa situação em que os idosos são mais numerosos do que os jovens. Os últimos não sabem o que fazer aos primeiros e os idosos, os primeiros, deparam-se com os perigos da idade, as demências, inclusive a chegada da morte isolados e em total apatia como cadáveres adiados que vagueiam. Se muitas vezes a terceira idade foi filmada a partir do núcleo familiar (pais e filhos ou, por exemplo, netos e avós), a segunda longa-metragem de Momoko Ando parte de uma premissa inteiramente diferente: Sawa, uma cuidadora de idosos, cumpre o último desejo de um cliente senil (deitar-se uma noite a seu lado) e acaba por pegar fogo ao colchão de forma involuntária, enquanto a filha do velhinho em apuros se enforca no meio do rebuliço. Perdendo qualquer credibilidade para voltar ao trabalho, sem dinheiro e sem casa, seguimos a epopeia vadia de Sawa que continua insistentemente a travar conhecimento e a interessar-se pelas almas anciãs que tristemente se arrastam pelas ruas, ignorados e sem companhia. Momoko Ando, que já no seu insuficiente Kakera: A Piece of Our Life demonstrava afinidade por personagens castiços nas bordas do socialmente aceitável faz da sua protagonista (brilhantemente interpretada pela sua própria irmã, Sakura Ando) não um ideal de santidade, mas alguém que demonstra, à sua maneira e com todas as suas idiossincrasias, o fascínio por estas existências, não esquecendo os frutos e os elogios do seu ofício auto-imposto. Com quase três horas e meia, é impossível não observar em 0.5 mm alguns desequilíbrios: a começar pela duração, demasiado extensa para uma película que se constrói por colagem de blocos e não pela articulação das suas partes e acabando na insuficiência do terceiro acto, que podia ter sido substituído ou até cortado por completo. Vale-nos a siderante prestação de Sakura Ando, o poder magnético da sua estranha e teimosa personalidade e certas cenas em que vemos o outro lado da terceira idade filmado por alguém que não tem pruridos nem faz cerimónias.



Oh Brother, Oh Sister! (2014) de Masafumi Nishida: **
Nada em Oh Brother, Oh Sister nos surpreende mas nada nos igualmente aborreceu. A história de um irmão recém-separado e de uma irmã celibatária serve de pretexto para suavemente entendermos os prós e os contras da sua relação quando ambos se deparam com possíveis e novos interesses amorosos. Há aqui momentos calorosos, especialmente por causa de Hairi Katagiri, a comediante que interpreta a irmã e que faz um bom trabalho em jogar com a extravagância da sua personagem e o seu lado menos atraente, relembrando algumas vezes (especialmente na cena final) o grandioso personagem interpretado por Kiyoshi Atsumi, Tora-San. O realizador Masafumi Nishida fez um filme que pertence à longa tradição japonesa de representar o quotidiano, explorando a importância dos laços familiares (ou o que restam deles) e pincelando com humor de situação os percalços da vida social e o relacionamento com os outros que não ocupam a esfera mais caseira. Uma menção para o já referido final onde se transforma aquilo que poderia ter sido o desfecho de uma comédia romântica vulgar num desenlace mais sóbrio, próximo do real e que afina no diapasão daquela conhecida sentença: a emoção maior jaz na desilusão de uma situação não resolvida.



As the Gods Will (2014) de Takashi Miike: **
O novo filme de Takashi Miike poderia assemelhar-se a um restaurante estrelado pela Michelin a servir fast food gordurosa mas irresistivelmente viciante: sabemos que não faz bem à saúde mas continuamos a ingerir o pecado como gourmets. No seu âmago, As the Gods Will é puro trash de alto orçamento, horror de sobrevivência surreal que nem pede licença para entrar e logo na primeira cena esmurra-nos no estômago e esfaqueia-nos a sensibilidade. Sem quaisquer justificações, introduções ou boias de salvamento, uma classe inteira vai sendo dizimada por um monstruoso boneco Daruma que, jogando uma versão extrema do "macaquinho do chinês", faz explodir as cabeças daqueles que não mantêm a rigidez corporal quando este se vira e termina a contagem. Desta mistura sádica e cruel entre inferno e infantilidade (todos os desafios são inspirados em brincadeiras tradicionais japonesas) não saímos mais e nem Miike (levando os limites do big budget movie ao paroxismo do sangue) está interessado em ajudar-nos a entender as razões implícitas e explicitas dos massacres sumários dos estudantes nem as circunstâncias da sua reclusão. Quem são os responsáveis? Porquê tanta competitividade alucinante? Como tornar as motivações dos personagens, excluindo a de não perder o jogo e morrer, inteligíveis? Todas estas perguntas ficam suspensas no ar enquanto são encenados jogos mortais com requintes de malvadez, tão aleatórios e inusitados na sua execução que só a lógica dentro da absurdidade pode salvar os estudantes desesperados de não serem caçados pelos antagonistas que nunca conhecem. Ainda a propósito dessa imprevisibilidade: Miike não perdoa e não se coíbe de executar aqueles personagens que julgávamos intocáveis, mantendo sempre um nível de novidade dentro da tortura que tem de ser elogiado pela sua coragem, desapego e vontade de surpreender, sempre chocando. Claro que sendo uma película trash para as massas, As the Gods Will aposta tudo na imediatez da sua premissa (eis a dissidência com o demasiadas vezes comparado Battle Royale) em que os desafios da barbárie pedem sobreviventes (nós) a subir os degraus da escada e ver até onde chega a insanidade a que foram submetidos. Mas a revelação apressada do final, inacreditavelmente ridícula ou a pedir sequela (?), é digna dos manguitos que várias e várias vezes Miike aplicou nos seus finais onde a lógica é posta de parte e somos forçados a celebrar toda a impostura.

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