30/12/14

Fragmentos de 2014/12/30



The New Way - Akemi's Part (1936) de Heinosuke Gosho: ***
The New Way - Ryota's Part (1936) de Heinosuke Gosho: **
Com um argumento de Kogo Noda (o habitual ozuniano Kogo Noda), The New Way divide-se em duas partes distintas, não só por estratégia de marketing - era habitual na altura separar em duas partes, histórias mais longas do que o costume (também Mikio Naruse e Hiroshi Shimizu o fizeram) - mas principalmente porque Akemi's Part e Ryota's Part diferem completamente um do outro em termos de significado e energia da sua protagonista moderna (sem ainda assim demonstrar uma agenda política qualquer ou grandes inclinações esquerdistas: o moderno aqui não é panfletário mas próprio da personagem). A primeira parte explora as vidas afectivas de duas primas em plenos anos 30: a forte e alegre Akemi que evita o casamento planeado pelo seu pai enquanto saí com um homem seu conhecido e Utako, uma mulher mais feminina que está apaixonada por um pintor que viajará para França e a deixará só por dois anos. O segundo capítulo, por sua vez, tenta serenar a tragédia que fecha o primeiro acto, incorporando a devastada Akemi num esquema social mais tradicional onde, porventura, poderá conhecer tempos mais felizes ao lado de um homem que aprenderá a amar. Vale a pena citar os elogios de Jake Savage no seu blogue Cinema Talk sobre a prestação magnética de Kinuyo Tanaka no primeiro filme: "Em vez de se tornar uma Jean Arthur japonesa, a interpretação de Tanaka é algo totalmente novo. Nos dois relacionamentos retratados, ela consegue de algum modo ganhar o controlo. Correndo o risco de menosprezar as imagens de Gosho, esta é uma película de Tanaka e é abastecida pelo seu empenho." De facto, não podemos mesmo discordar desta análise. A Tanaka de Akemi's Part é bem mais interessante e sedutora do que a de Ryota's Part: ela não questiona radicalmente o sistema social nem a eventualidade de um relacionamento com um homem, mas troça e ri-se de algumas convenções e das limitações sociais do seu sexo. Ela fuma com charme, tem sempre resposta e emana o tal sentimento da modernidade que, por exemplo, a sua prima Utako não tem (essa obediência ao caminho velho será capital para a má decisão que Utako tomará em Ryota's Part). É por isso que o cliffhanger do primeiro filme é particularmente tocante (e talvez não houvesse necessidade nenhuma de um segundo filme), porque contrasta a perda amorosa e injusta de Akemi com a sua reacção de simultâneo pânico e tenacidade: de costas e com o passo apressado, não correm lágrimas (como seria esperado de uma mulher).



Children Who Draw (1956) de Susumu Hani: ****
Documentário muito referenciado mas raramente visto, Children Who Draw é o segundo capítulo da trilogia de Susumu Hani sobre as primeiras experiências sociais das crianças. Com o subtítulo "Entendendo a arte das crianças", este pequeno filme com pouco menos de 40 minutos, encara os desenhos infantis como a extensão imediata das arrelias, tristezas, sonhos e obsessões inexplicáveis dos pequenos desenhadores, sendo que a componente abstracta e aparentemente redutora das figuras e das formas revela um modo único de transfigurar as experiências concretas (até exorcizar certos demónios) libertando uma criatividade e imaginação que se descobre a cada rabisco e pincelada . Hani foi várias vezes considerado um cineasta da autenticidade, tanto na maneira como quebrava as barreiras das suas ficções (sempre cunhadas com o real que as extravasam) como na escolha dos sujeitos das suas filmagens, esses ainda não totalmente afectados pelas normas da sociedade. As crianças filmadas por ele não têm consciência da câmara (e apenas uma proto-consciência delas próprias) e, tal e qual como nos seus desenhos sem filtros, representam a maior transparência possível na maneira como se comportam, como lidam com os outros e como assimilam as experiências em seu redor, em suma, na maneira como crescem e aprendem. É preciso, portanto, escutar o narrador que muitas vezes nos aponta para o progresso individual de cada criança apoiando-se nos novos desenhos por eles feitos. Esse nexo causal (ainda hipotético e obscuro) faz-nos olhar de outro modo para a "arte infantil", maravilhosas peças místicas que nos deixam aceder ao mundo complexamente simples das crianças.



The Flame of Devotion (1964) de Koreyoshi Kurahara: ****
Contado a partir do fim com uma estrutura de memórias aos retalhos (impressionante notar como as imagens durante, pelo menos, a primeira hora de filme vão dando lugar umas às outras através de sobreposições e fades, como se a memória ela mesma funcionasse por evocações e invocações, sístoles e diástoles recordativas), The Flame of Devotion representa o ideal máximo da paixão, um sofrer querendo, um erotismo dos corpos e das almas - que dizer, portanto, das sequências terrivelmente eróticas porém inocentes dos banhos despidos nos mares ou das brincadeiras por entre as ervas altas? - enfim, uma aprovação da vida na própria morte, como já nos dizia Georges Bataille. E é mesmo sobre isso que o drama trágico dos apaixonados de Kurahara incide: a conquista do paraíso através do outro e a perda subsequente desse agente que sustentava o peso do mundo. A presença inefável de Ruriko Asaoka como amada e amante representa o ponto nevrálgico de todo o filme. Ela, que é a senhora do mar e das montanhas, caminhante noturna e solitária por entre o fumo morno dos comboios (sim, a cinematografia é assim tão expressiva!), ela que é temente dos mensageiros e das mensagens da guerra sem sentido que ceifa os homens sem razão e deixa as mulheres penando em silêncio e surdina, ela que é apenas uma mulher com uma tenacidade inacreditável, miraculosa mesmo quando confessa ser fraca e não ter nenhuma. The Flame of Devotion, com a sua fotografia brilhante e lírica e com a interpretação minuciosa da sua protagonista, consegue tornar autêntico e palpável todo o exagero romântico de um amor que significa a vida, que é maior do que a vida.



Hymn (1972) de Kaneto Shindo: ***
Ao adaptar Shukinsho, o famoso conto de Junichiro Tanizaki que levantou alguma celeuma literária devido ao seu registo ambíguo, Kaneto Shindo quis reafirmar alguns lugares comuns sobre a relação de extrema devoção de Sasuke a Okoto enquanto que outras evidências das adaptações cinematográficas surgem diferentemente, chegando mesmo a ser desviantes. Visto que se trata da sua primeira produção Art Theatre Guild, Shindo teve a necessidade de abrir o filme num registo semi-documental (o que significa que a "verdade" do documentário é encenada), mostrando-se a si próprio de costas para a câmara, primeiro numa visita à campa dos amantes e depois fazendo uma entrevista, mais uma vez forjada, àquela que testemunhou em primeira mão o relacionamento - aqui verdadeiramente sado-masoquista - da cega Okoto, mestre de koto e shamisen, com Sasuke, o discípulo submisso. Teru, a empregada da casa, recorda-se do que se passou, sempre em diálogo com o próprio realizador, e confronta as suas memórias com o relato escrito de Sasuke, supostamente a versão mais fiel dos acontecimentos. Neste jogo de vozes e neste questionamento da autenticidade do que está escrito talvez se mencione, ainda que de maneira subliminar, toda a discussão feita por escritores e críticos em torno do que realmente se passou nesta criação literária aparentemente tão ideal e pura. Portanto, nesta versão carnal, à flor da pele onde o sexo e as necessidades corporais tomam a dianteira, foca-se sobretudo o poder erótico e à primeira vista assimétrico da mestra pelo seu discípulo e como essa forma de duplo aprisionamento (a mestra só ordena na medida em que tem alguém para ordenar) cria uma necessidade retorcida e egoísta de se afunilar o mundo em prol da obsessão pelo outro - a obsessão de servir e a de ser servido. Com efeito, a relação não assumida de Sasuke e Okoto é descrita como egoísmo a dois: em simultâneo, veja-se o abandono sucessivo dos bebés bastardos que geram em segredo, e individual, quando mesmo na auto-cegueira de Sasuke, que na versão de Yasujiro Shimazu significava não só a maior abnegação possível como o abandono pelo mundo irreal das sensações, encontramos uma substituição de sentidos (a visão pelo tacto) ainda mais prazerosa e sexualmente gratificante para os dois (e que planos deliciosamente oníricos, esses da cegueira). Shindo, no entanto, não despreza nem menoriza esta obsessão. Chama-a de amor intenso e relata-a como uma das formas mais violentas e passionais de apego e afectação. Nesse momento, ainda que de maneira completamente diferente, Hymn reencontra a força da narrativa original mesmo quando se desvia dela a todo o custo.



Poem (1972) de Akio Jissoji: *****
Akio Jissoji deixou-nos um legado cinematográfico tão importante que o seu nome deveria ser dos primeiros a ser proferidos quando se fala de cinema japonês. A trilogia a que se resolveu chamar "Sexo e Religião" (composta por This Transient Life, Mandala e este Poem) representa um dos grandes marcos do cinema mundial no que diz respeito ao casamento entre a audácia formal presente na arquitectura dos planos (que induzem à transiência e à meditação) e a capacidade abstracta, subversiva e filosófica dos problemas únicos que levanta. O universo perversamente religioso de Jissoji será sempre motivo de maravilhamento e redescoberta para nós, provando, em última análise, que o ofício do cineasta se resume a desregular o olhar e através dele a mente, o que lhe permite criar contradições deveras exóticas e enigmáticas: espaços poéticos, corpos sexualmente cruéis, tendências ascéticas de recusa do mundo terreno e um universo obliterante de erotismo e sonho. Sempre nesta trilogia houve uma componente dialógica (e nunca ninguém filmou diálogos como Jissoji) e os três filmes apontam para diversas possibilidades de confronto entre as visões radicalmente heterogéneas dos personagens. É nesses antagonismos vivenciais e considerativos que reside a tensão lancinante. É a negação do presente (do "tempo" ele mesmo em Mandala) que conduz ao fascínio religioso e, como dizia alguém, os filmes de Jissoji são bastante mais representações radicais de revolta do que examinações profundas da fé. Em Poem, as referências budistas estão ainda mais apagadas do que nos dois filmes anteriores e a função abstracta do monge parece exercer um poder simbólico que contrasta e acompanha os demónios interiores de Jun, um jovem obstinado que assiste à lenta queda dos sucessores da antiga família Moriyama a quem jurou fiel vassalagem. A radical obediência de Jun às regras que ele próprio criou, e que por vezes vão no sentido contrário daquilo que o seu senhor deseja, prova a sua busca impossível pelo ideal feudal dos antepassados (cujas inscrições funerárias venera e deseja copiar) num mundo prestes a colapsar, deslocado de referências, fortemente selvagem e capitalista; um mundo onde os vivos estão mortos e os mortos deveriam estar vivos. Se o anti-herói de This Transient Life, talvez o mais dostoievskiano dos seus personagens, corrompia o sistema familiar activamente porque, no seu ponto de vista, não existiam leis no mundo terreno, Buda e o paraíso eram o Nada e o Inferno era o local mais humano de toda a "suposta" criação celeste, Jun, o mais mishimano dos seus personagens, enraíza até às últimas consequências o ditame latino "ora et labora" e leva uma vida mortificada entre os espectros (e que fotografia tão assombrosamente escura a deste filme!), acreditando desesperadamente, através da obediência cega ao dever, na salvação da família pela "forma" de agir e não necessariamente pelo conteúdo. Poem representa, portanto, o último acto de revolta: a de quem luta contra o caos generalizado, invisível, com a máxima e mais inquestionável ordem como um monge. Nesse sentido, precisamente por abranger a degenerescência esta é a obra mais amargurada de toda a trilogia, que tinha anteriormente optado pelos caminhos inversos: a desordem individual contra a ordem social em This Transient Life e a desordem grupal contra si mesma em Mandala. No entanto, o mesmo destino é partilhado para quem comete a coragem pecaminosa da transgressão quando todas as máscaras caem: a morte, o suicídio, o sonho ou os três juntos.



Love Bombs (2013) de Nobuteru Uchida: **
Tinha já denunciado os pecados da anterior tentativa do estreante Nobuteru Uchida: típica produção independente com uma estética confusamente imediata onde o baixo orçamento se notava mais do que era suposto. Após as críticas, acabei também duvidando. O realizador poderia estar só a lutar contra os óbvios problemas de um filme com essa escala e as escolhas técnicas poderiam ser apenas "males menores" para chegar onde queria e completar a tarefa. Por seu lado, com Love Bombs muitas das dúvidas de qualidade e competência ficam esclarecidas. Uchida sabe como colocar a sua câmera e o uso do plano fixo (contrapondo aos tremeliques irritantes do seu anterior filme) funciona como forma de enquadrarmos os personagens em espaços familiares e sedutores. Algo que já tínhamos elogiado anteriormente era a direcção de actores e este caso também não é excepção. Kiyoko, uma mulher misteriosa chega a uma aldeia e é acolhida por uma idosa simpática que não lhe faz muitas questões. A pequena comunidade, que praticamente não tem mulheres jovens mas tem muitos homens, fica abalada pela presença sedutora de Kiyoko, tornada de repente aos olhos de todos numa mulher fatal. Há duas interpretações acerca da figura clássica da mulher fatal: ou ela é directamente responsável pela ruína das homens que seduz (não é preciso irmos ao Antigo Testamento e a Lilith quando temos a Susana de Buñuel) ou indirectamente e por onde passa, deixa um rasto triste de sensualidade, pois todas as relações com o sexo oposto podem ser secretamente reduzidas à tensão sexual no outro provocada. Uchida em Love Bombs explora a segunda hipótese. Kiyoko, presa na sua feminilidade submissa e na pressa de fugir do passado da grande cidade, o que quer que fizesse sempre veria homens interessados por ela. Um dos pontos altos do filme é certamente esta revolta contra a sexualidade subjacente no contacto com o outro sexo e a hipótese de nem todas as mulheres fatais serem assim tão fatais, mas "como animais perdidos", à procura de sair desse rótulo que aprisiona mais do que liberta.



Rurouni Kenshin - Kyoto Inferno (2014) de Keishi Otomo: ***
O segundo filme das aventuras do lendário Battosai é também a primeira parte (de duas) centrada na melhor e mais aguardada saga do manga escrito por Nobuhiro Watsuki, isto é, a batalha contra o aterrorizador Makoto Shishio. Kyoto Inferno, à semelhança do seu predecessor, continua bastante fiel ao espírito do original, mas não deixa de tomar algumas liberdades que podem ser criticadas pelos admiradores mais hardcore da série. No entanto, é preciso ser muito purista para desprezar totalmente a forma como Otomo condensou aproximadamente cinco volumes e meio da obra original (da metade do volume 7 ao 12) sendo que os "problemas de adaptação" podem ser justificados, parcialmente, pelo salto da saga de Aoshi Shinomori, que deveria ter ocorrido entre a acção do primeiro filme e a aparição de Shishio. Sem dúvida, todas as cenas com Aoshi são desnecessárias e colocadas à pressão, apenas para introduzir o rival imprescindível do original, mas aqui sem motivações relevantes e com uma personalidade longe de ser convincente. Outras mudanças, que se justificam pela obrigatoriedade de num filme se ter de juntar todas as pontas soltas, são o pouco tempo dado a certos personagens (por exemplo, Misao Makimachi, a companheira de Kenshin em Kyoto, reduzida a figurante) e a quase inexistência de outros (poderíamos ter tido algumas introduções para os restantes membros das Dez Espadas de Shishio...). Tendo em conta as limitações das versões live-action de mangas e animes feitas pelos grandes estúdios, esta será certamente uma das melhores que poderíamos ter tido. Takeru Sato continua a ser um excelente Kenshin (e volto a reiterar a dificuldade em torná-lo convincente e não resumi-lo a mera caracterização ou cosplay) e outras prestações destacam-se pela positiva: Ryunosuke Kamiki como o perigosamente inofensivo Sojiro Seta, Yosuke Eguchi como Hajime Sato e, finalmente, Tatsuya Fujiwara como Makoto Shishio, não tão estratega e cerebral como no manga, mas um vilão muito ameaçador e psicopata. Se continuarmos por este caminho e se no terceiro filme, Rurouni Kenshin - The Legend Ends, se modificar alguns pecados, toda a trilogia terá um lugar especial para àqueles que, como eu, já não confiavam nas adaptações em imagem real de mangas.

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