Castle of Flames (1960) de Tai Kato: ***
Akira Kurosawa ficou conhecido por misturar exoticamente o classicismo shakespeariano na tradição do jidai-geki, ou seja, no filme de época japonês. Não foi, portanto, o único a fazê-lo. O (aqui ainda iniciante) Tai Kato pegou no mais famoso dos seus dramas, Hamlet, e efectuou uma curiosa adaptação passada nos tempos dos senhores feudais. Kato, ainda inseguro quanto à sua saturação estética, executa um drama sólido, competente e que não desonra o material original (apesar de algumas dissidências profanas). Para os puristas, pode até não ser recomendável, mas não deixamos de assistir a momentos dignos de um cineasta em maturação (veja-se a cena da confissão da mãe: toda filmada num sumptuoso plano-sequência), capaz de transpor universos diferentes numa mesma visão homogénea.
The Gambler's Code (1961) de Kazuo Ikehiro: ***
Desde pelo menos 1929 que a indústria cinematográfica japonesa adapta para o grande ecrã o celebérrimo conto de honra escrito por Shin Hasegawa. Kutsukake Tokijiro (título original da obra) é um jogador itinerante que, de início participa, mas depois assiste a uma rixa de yakuzas, na qual se perde uma vida. Decidido a proteger a viúva grávida e o filho do yakuza defunto, Tokijiro arranja problemas com uma quantidade enorme de mafiosos e renega à sua espada para angariar dinheiro, facilitando, assim, o parto da mulher que acompanha. Nesta versão para a Daiei, Raizo Ichikawa está irrepreensível e os personagens secundários (a bela Michiyo Aratama, Takashi Shimura e até mesmo uma aparição rara de Haruko Sugimura) são de luxo. Kazuo Ikehiro encena uma versão clássica na mais pura acepção da palavra, isto é, nada aqui vai contra a forma do filme de época nem da mais básica polarização: bons e maus. Podemos mesmo até dizer que este é um exemplo paradigmático de como se faz (sem exageros, dissidências ou transgressões), um filme de estúdio com alma.
The Lonely Yakuza (1966) de Tai Kato: *****
Olhar para estas duas versões de Kutsukake Tokijiro - a de Ikehiro e a de Kato -, sobretudo se sublinharmos as suas diferenças abissais, é um exercício intrigante. Em primeiro lugar, porque põe a descoberto a circunstância de aquilo que, em cinema, chamamos "clássico" ser sinónimo de idealização, ou seja, o termo espelha a realidade com acréscimos e insuflação moral, sendo que o conflito reside e é desencadeado sempre pelo exterior. Por contraste, esta representação do herói como modelo ou figura ideal sofre crassas mudanças com o método moderno que vira o olhar para o mundo interior e coloca os problemas todos de forma intrínseca e interna. O conflito narrativo como coisa causada apenas pelos outros é demasiado simples para Tai Kato, o grande reformista (mesmo que conservador) dos filmes de época protagonizados por viajantes, jogadores e, principalmente, yakuza. Ver The Gambler's Code lado a lado com The Lonely Yakuza seria, mais ou menos, equivalente a assistir ao The Searchers de Ford e, de seguida, comparar a um remake (imaginário) dirigido por Sergio Leone. Trata-se dos mesmos universos (inclusive os mesmos personagens e a mesma história) só que vistos através de ângulos antagónicos. Toda a obra de Kato é perpassada por um dramatismo sóbrio que raramente molda ou influência quer o sentido ético dos seus heróis, quer a expressividade da sua câmara. Sempre terra-a-terra, sempre categoricamente mundano, sem esconder a profundidade e os dilemas interiores dissimulando-os com puritanismos, esta adaptação definitiva de Kutsukake Tokijiro é corajosa o bastante para encarar a angustiada vida da errância, vida marcada pelo sentido de obrigação que muitas vezes colide com a humanidade. Para Kato, a via dos yakuzas apenas traz perdas constantes e nenhuma alegria (nem mesmo a amorosa) é passível de ser satisfeita. Quando Tokijiro (não me canso de elogiar Kinnosuke Nakamura pelas suas sucessivas excelentes interpretações) diz no final: "ser yakuza é como ser um insecto", já não esperamos pelo típico herói que sorri e se despede da plateia enquanto o sol se põe. O pessimismo realista de Kato é tal e qual como os low-angles da sua câmara: presos para sempre à terra e ao solo, vendo a vida como ela é. Portanto, antes de haver herói infalível, há sofrimento, há interioridade.
The Lonely Yakuza (1966) de Tai Kato: *****
Olhar para estas duas versões de Kutsukake Tokijiro - a de Ikehiro e a de Kato -, sobretudo se sublinharmos as suas diferenças abissais, é um exercício intrigante. Em primeiro lugar, porque põe a descoberto a circunstância de aquilo que, em cinema, chamamos "clássico" ser sinónimo de idealização, ou seja, o termo espelha a realidade com acréscimos e insuflação moral, sendo que o conflito reside e é desencadeado sempre pelo exterior. Por contraste, esta representação do herói como modelo ou figura ideal sofre crassas mudanças com o método moderno que vira o olhar para o mundo interior e coloca os problemas todos de forma intrínseca e interna. O conflito narrativo como coisa causada apenas pelos outros é demasiado simples para Tai Kato, o grande reformista (mesmo que conservador) dos filmes de época protagonizados por viajantes, jogadores e, principalmente, yakuza. Ver The Gambler's Code lado a lado com The Lonely Yakuza seria, mais ou menos, equivalente a assistir ao The Searchers de Ford e, de seguida, comparar a um remake (imaginário) dirigido por Sergio Leone. Trata-se dos mesmos universos (inclusive os mesmos personagens e a mesma história) só que vistos através de ângulos antagónicos. Toda a obra de Kato é perpassada por um dramatismo sóbrio que raramente molda ou influência quer o sentido ético dos seus heróis, quer a expressividade da sua câmara. Sempre terra-a-terra, sempre categoricamente mundano, sem esconder a profundidade e os dilemas interiores dissimulando-os com puritanismos, esta adaptação definitiva de Kutsukake Tokijiro é corajosa o bastante para encarar a angustiada vida da errância, vida marcada pelo sentido de obrigação que muitas vezes colide com a humanidade. Para Kato, a via dos yakuzas apenas traz perdas constantes e nenhuma alegria (nem mesmo a amorosa) é passível de ser satisfeita. Quando Tokijiro (não me canso de elogiar Kinnosuke Nakamura pelas suas sucessivas excelentes interpretações) diz no final: "ser yakuza é como ser um insecto", já não esperamos pelo típico herói que sorri e se despede da plateia enquanto o sol se põe. O pessimismo realista de Kato é tal e qual como os low-angles da sua câmara: presos para sempre à terra e ao solo, vendo a vida como ela é. Portanto, antes de haver herói infalível, há sofrimento, há interioridade.
When Twilight Draws Near (1969) de Akio Jissoji: ****
Esta média-metragem de quarenta minutos assinala o início fulgurante da carreira do enorme cineasta Akio Jissoji. Auto-financiado e distribuído pela mítica Art Theatre Guild, numa sessão dupla que também continha Diary of a Shinjuku Thief de Nagisa Oshima, When Twilight Draws Near apenas pelo seu aspecto e premissa transporta-nos para o reino temático e estético da chamada Nouvelle Vague japonesa, caracterizada, entre outras coisas, por filmar a malaise juvenil e as suas tentativas violentas de resgatar uma certa transcendência através da imanência. De facto,quando a ATG deu a oportunidade para filmar uma trilogia épica (possivelmente uma das melhores trilogias de sempre), Jissoji descrevia da mesma maneira outros jovens perdidos numa era em que nada os metia em questão servindo-se de referências, símbolos ou epifanias religiosas para as cruzar com a necessidade de revolta individual (como no seu Mujo) ou colectiva (ver Mandala). Tal como os filmes de Oshima ou Wakamatsu, When Twilight Draws Near revela, nos seus diálogos, as chagas históricas da guerra (menciona-se Auschwitz, Hiroshima) e compara-se a veracidade e gravidade histórica com o "jogo" absurdo dos seus protagonistas, condenados a recriar o caos para iluminar, refutar ou obscurecer o seu caminho espiritual. Da virtualidade à realidade. Uma coisa é certa: já aqui estavam todos os ingredientes para a sua trilogia religiosa!
Wicked Priest 3 - A Killer's Pilgrimage (1969) de Takashi Harada: *
Wicked Priest 4 - Wicked Priest Comes Back (1970) de Takashi Harada: ***
Wicked Priest, a popular saga do monge atrevido assinada pela Toei (e apadrinhada por Takashi Harada que dos cinco filmes apenas não realizou o primeiro e o último) é um caso paradigmático de reciclagem de ideias que os outros estúdios vinham fazendo, obviamente colocando uma componente mais adulta, às vezes brejeira, talvez para reforçar os momentos de comédia. Shinkai, o nosso monge, tem qualquer coisa de Zatoichi para os crescidos e a sua aparência inofensiva (até o seu ofício inocente e itinerante) reforçam os momentos em que das suas mãos se faz justiça. Por outro lado, a relação animalesca com as mulheres (obviamente muito mais seguindo o espírito grindhouse do que o charme galante - na senda dos ídolos Ken Takakura ou Koji Tsuruta) faz ainda lembrar o personagem de Shintaro Katsu na saga Hoodlum Soldier. Finalmente, Shinkai é Tomisaburo Wakayama, isto é, até à altura, o actor representava-se a si próprio e a sua imagem de marca era tão importante que os argumentistas claramente escreviam directamente para a estrela. Posto isto, pouca coisa nesta saga é verdadeiramente marcante. No terceiro filme, o confuso A Killer's Pilgrimage, Shinkai, entre algumas coisas, visita uma aldeia piscatória, enamora-se por uma pescadora, luta contra um grupo de indigentes que quer fazer a revolução à força e ainda tem tempo para combater o seu arqui-inimigo, o monge Ryotatsu (cego desde o primeiro filme). Já em Wicked Priest Comes Back a série ganha algum do seu charme. Desta vez, o monge volta à sua aldeia natal e arranja problemas com a máfia residente e ainda se torna rival do seu melhor amigo de infância. Por se aproximar mais de um estudo de personagens e por dificultar o caminho do seu protagonista (cegando-o, a dada altura), Harada aqui consegue consolidar bastante melhor a narrativa episódica a despeito das imperfeições do costume.
Prophecy (1983) de Susumu Hani: *****
Não, não conseguimos sentir (moralmente) a História senão pela presentificação. Sem confrontarmos as imagens avassaladoras das vítimas dos bombardeamentos atómicos - que pela sua intensidade lancinante anulam qualquer intenção perversa, qualquer perspectiva escondida ou propósitos sensacionalistas - não podemos retirar um conteúdo ético e existencial duradouro. Só olhando de frente para esse caos escatológico podemos conservar a memória da tragédia alheia, tornando-a, justamente, um pouco mais nossa. O eu torna-se outro por este acto de reconhecimento na tragédia. Certamente Hani e o 10 Feet Film Movement (um movimento organizado pelo Museu da Paz que incentivou cidadãos japoneses a comprar aos Estados Unidos filmes confidenciais sobre os dias que se seguiram ao lançamento das bombas atómicas) perceberam essa necessidade indubitável de mergulhar nas imagens tenebrosas captadas in loco e com um despudor cirúrgico dos milhares de inocentes destinados a sofrer para a eternidade por guerras e interesses que não eram os seus (e que ainda continuam a nortear o mundo). Temos de olhar para estas imagens e deixar ecoar na nossa famélica memória a amargura categórica e profética destas palavras: "to our sufferings, never again".
Lone Wolf and Cub - The Final Conflict (1993) de Akira Inoue: ***
Ah, a velha querela com os remakes! De entre todos os argumentos (muitos dos quais partilho) contra a existência desse parasitismo artístico, esquecemo-nos que o que legitima uma readaptação é o facto dela poder corresponder a uma nova (e radical) abordagem que cria diálogos múltiplos com o material original enquanto conquista novos espectadores. Sempre associei o argumento da "necessidade" do remake a estratégias de marketing disfarçadas de populismo ou falsos serviços públicos. A verdade é que nenhuma obra precisa de ser refeita apenas para parecer mais moderna se se mantiver tudo como estava. Portanto, quanto mais radical for a perspectivação do autor, quanto mais se distanciar a adaptação do adaptado, em suma, quando o criador sente que algo devia ser visto de outro ângulo, eis que surge o poder, em certo sentido a necessidade, do remake. A pergunta era: como podia Akira Inoue num só filme competir com os seis filmes originais da saga Lone Wolf and Cub? Como podia ele querer tocar numa obra tão imagéticamente definitiva sem incorrer na blasfémia? Bastou mudar a disposição inteira e o foco para justificar e tornar autónoma esta nova leitura ultra-condensada e bastante mais sentimental da obra de Kazuo Koike e Goseki Kojima. O famigerado percurso para os infernos do executor oficial e o seu filho está aqui virado para a humanização de todos os personagens (incluindo os vilões), distanciando a frieza e a violência cruel que está inscrita, sem dúvida, na obra e nos filmes originais. Não deixamos de sentir em Inoue, que foi assistente do genial Kenji Misumi (dos seis Lone Wolf realizou quatro), uma necessidade qualquer de prestar tributo ao seu mestre, seguindo os seus instintos e orquestrando a sua própria visão da descida aos infernos de pai e filho. Com todas as suas diferenças e fraquezas (de facto, o cuidado estético e a brutalidade estoica dos originais criava contrastes fabulosos), este é um remake digno sem qualquer medo de arriscar e sem vergonha de falhar.
Umas palavras em relação ao ciclo da Cinemateca que dá pelo nome "Passado e Presente do Japão Na Cinemateca": já o título anuncia que "anything goes". Com o apoio privilegiado da Japan Foundantion esperava-se mais criatividade na curadoria e escolha dos filmes, perfilando na programação uma má ou insuficiente amostra tanto do que se tem feito actualmente (fica-se com a impressão que apenas há filmes ligeiros a explorar) como da imensa riqueza do que se fez (Mizoguchi e Imamura a representar teimosamente o tal passado aludido, como se bastasse). Enfim, enquanto mantivermos os mesmos nomes de sempre - presenças automáticas que deixaram de reflectir escolhas integradas numa lógica de ciclo - podemos apenas contar com a propagação de reconhecimento que, muitas vezes se opõe ao conhecimento, sinónimo de descoberta, aventura. Sobre este The Bandage Club há pouquíssimo a assinalar. Segundo de três filmes realizados por Tsutsumi apenas em 2007 (os outros dois são o desequilibrado Happily Ever After e o medonho Sword of Alexander), a narrativa centra-se num grupo de jovens que criam um clube de ligaduras para sarar as feridas que todos carregamos. É um filme inofensivo mas extremamente melodramático (no mau sentido), prova disso é a música irritante que não nos deixa quietos e é mecanicamente inserida sempre que o espírito tele-novelesco pede. Apenas algum cuidado imagético impede que o filme se torne num gigantesco tédio, e por mais simpático que o grupo de jovens seja, jamais sentimos grande apreço pela narrativa, que anda completamente à deriva, resolvendo e abrindo problemas de forma sistemática e artificial. Senhores da Cinemateca: para quando um ciclo japonês coerente só de inéditos? Um ciclozinho ATG?
The King of Jail Breakers (2009) de Itsuji Itao: **
Itsuji Itao, actor e celebridade pública, tem aqui a sua estreia na realização. À semelhança de um Hitoshi Matsumoto (outro comediante que também tentou a sua sorte na cadeira de realizador), o filme confia demasiado num determinado conceito e fá-lo repetir, absurdamente, numa cadeia de pequenas situações e sketches, variando talvez só na intensidade e dramatismo como são executados. O próprio Itao interpreta o prisioneiro mudo (feliz escolha a de o ter privado de diálogos, tornando-o mais misterioso), rei da fuga que progressivamente vai-se evadindo das maiores e mais difíceis prisões qual Macgyver japonês. Em termos de imagem, o digital realmente não abona muito a favor de Itao. Mal contrastado e imagens pouco polidas fazem-nos obrigatoriamente virar para as interpretações que são satisfatórias. E não quer dizer que não haja momentos curiosos de cinema neste The King of Jail Breakers (por exemplo, o facto de se reproduzir, frame a frame, o inicio a meio do filme e de seguida surgirem as letras do título), mas isso diz mais respeito a truques de montagem e twists narrativos (como o final: nada complicado, mas eficiente) do que verdadeira pujança cinematográfica.
Tokyo Oasis (2011) de Kana Matsumoto e Kayo Nakamura: *
Apesar de ser ainda tão nova, a realizadora Naoko Ogigami surpreendentemente já fez escola e nos últimos anos temos visto chegar à cena independente umas quantas discípulas que pegam, sem tirar nem pôr, na mesma estética e feeling - já os descrevi noutro lado como um "estar-se" e não um "ir-se" - da cineasta. Casos como Pool (2009) de Mika Ohmori, Mother Water (2010) de Kana Matsumoto e agora este Tokyo Oasis vão das boas surpresas a um mimetismo sem esqueleto. Infelizmente, esta tentativa a quatro mãos recaí no segundo conjunto. De facto, o carácter fragmentário e espaçado que já estava presente na obra de Ogigami dessintoniza-se aqui de personagens ou mesmo situações significativas. Todos os momentos - por mais insignificantes que sejam - são filmados de um modo completamente vazio e desapegado e os três encontros no filme (porque são, de facto, três encontros, com nenhuma ligação entre si) não nos fornecem momentos prazerosos ou aquela comicidade discreta que soluciona problemas aparentes de ritmo. Kana Matsumoto e Kayo Nakamura, afinal, esquecem que não basta filmar conversas incessantes e corriqueiras para suscitar alguma emoção. Meninas, relembrem a regra primordial aprendida na escola de cinema: show, don't tell!
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