04/05/13

Fragmentos de 2013/05/04



Bad Boys (1961) de Susumu Hani: ****
Contrastando as glamorosas imagens iniciais da filha do Imperador a passear nas ruas de Tóquio com os rufias que se orientam nos mesmos espaços (até serem obrigados a reformarem-se), eis que Susumu Hani dava um significado meio irónico à sua câmara, capaz de contrastar perspectivas num ápice. Mas não tardamos a ser informados com uma nota introdutória que Bad Boys é um documentário cujos personagens são fictícios. E o que quererá isso dizer? Em primeiro lugar, que se mantêm a estrutura formal do documentário (filmado em 16mm, som dessincronizado da imagem, etc) em segundo que essa estrutura não deseja filmar a realidade - como se a ficção fosse qualquer coisa ilusória e excessiva - mas sim realidades, pedaços de sensações e  humores subjectivos. Note-se como nesta catadupa de imagens impressas com o selo documental, Hani toma a liberdade de criar verdadeiros desvios de insight e profundidade (quer estejam figurados nos monólogos do personagem principal ou nas transfiguradas cenas de memórias e projecções dos garotos enclausurados). Algo de inteiramente novo tinha chegado ao cinema japonês e o choque maior provinha justamente desta mistura incrível entre documentário e ficção, embora também seja relevante a descrição da vida e da rotina dos rapazes forasteiros, condenados a mudar e a se revolucionar interiormente.



The Friends (1994) de Shinji Somai: ****
Três rapazes curiosos com o significado da morte decidem espiar um velhote que vive abandonado no meio de um baldio para poderem investigar mais sobre aquilo que tanto os parece fascinar. Como uma premissa tão estranha pode chegar a ser um exercício deveras profundo sobre amizade e a tomada de consciência da finitude parece ser um mistério. Mas um mistério da responsabilidade do brutal cineasta que é Shinji Somai, cineasta que Mathieu Capel chamou - e acertadamente - da densidade. Densidade porquê, pergunta-se. Porque não há nada aqui que não seja apresentado de modo entretecido, quer em termos de imagem - os seus famosos planos-sequência imprimem sentimentos de realidade íntima, um tempo real a descoberto da câmara -, quer na maneira como a história se vai distendendo e evoluindo, recheando sempre de simpatia, amor e pathos as aventuras estivais dos três camaradas e a sua relação com o velho misterioso. Este é um filme que tem de ser experimentado e visto: as suas imagens estão num reino puro onde a lógica pragmática do cinema não parece ter qualquer alcance. Basta ver o modo como Somai não dá descanso a si próprio e à sua câmara, percorrendo os espaços, recusando planos apertados, em suma, sempre disposto a alargar o âmbito das suas imagens e as aproximar, finalmente, a uma visão de criança (mas contrária em tudo a uma infantilidade). Houve uma altura em que observávamos o mundo assim, com esta candura de quase não discernir, de não discriminar. Tudo no mesmo plano: as flores, a chuva, as lágrimas e os seres alados...



The Fallen Angel (2010) de Genjiro Arato: *
Esta adaptação levada a cabo pelo mítico produtor Genjiro Arato representava logo à partida um caminho sinuoso que carecia grandes fundamentações artísticas e parecia apenas seguir uma moda recente de rodar obras do célebre escritor decadente Osamu Dazai. Se as versões de Kichitaro Negishi (Villons Wife, 2009) e Masanori Tominaga (Pandora's Box, 2009) pegavam em partes mais desconhecidas (sobretudo menos populares) do corpo artístico de Dazai, Arato, pelo contrário, escolhia a sua mais emblemática e peculiar obra, No Longer Human para adaptar ao grande ecrã. Os problemas surgem logo com esta escolha. Primeiro, trata-se de um livro quase impossível de adaptar, pelo simples facto de ser um relato fragmentário na primeira pessoa sobre as condições psicológicas que levam um indivíduo a experimentar-se, a viver-se pura e simplesmente como uma mentira. Daqui decorre a expressividade do narrador enquanto introspectivo viajante, de mentira em mentira, para se poder aproximar dos outros homens. Como traduzir em imagens este género de escrita confessionária? Como complexificar estas relações entre exterior e interior, entre as progressivas tentativas de se humanizar, mentindo e a espiral decadente que o faz distanciar desse mesmo ideal e cada vez mais o familiariza com uma vontade de morrer? Arato parece não conseguir fazer mais do que descrever lineriarmente o processo auto-destructivo de Yozo Oba através das suas acções, sem introduzir a profundidade das suas análises, figuradas em sardónicos e desesperados monólogos, queixumes, pedidos etc. Parece até mesmo ser este um caso de popularização da imagem do artista decadente, tão só por ser decadente, não havendo, por isso, uma introspecção devida, que se exprimisse em sentimentos realmente agudos e despersonalizados, ambiguos e de conflituosidade identitária que estão por todo o lado na escrita de Dazai. Este vazio do herói decadente torna tudo em seu redor parco e desinteressante: não nos basta reconhecer a história que sabemos, mas falta adequa-la a uma expressão cinemática legítima. Para quem está remotamente interessado nos escritos dissolutos de Dazai este não é, de todo, o melhor caminho para começar ou acabar.



Dearest (2012) de Yasuo Furuhata: *
Não é a primeira vez que Furuhata aproveita o arquétipo cultural da honra masculina personificado por Ken Takakura e o lança em aventuras nostálgicas de última idade que acabam por funcionar para os espectadores como despedidas sucessivas de um herói reconhecido por todos, mas destinado a envelhecer e a enfrentar os problemas desse mundo. Na verdade, o realizador iniciado na Toei não tem feito outra coisa desde o final dos anos 70, altura em que as estrelas e o peso do filme yakuza estavam a cair numa certa decadência. Por isso este Dearest - road-movie algo obtuso e sem finura - pode ser enquadrado nessa categoria de películas que mesmo não sendo literalmente sobre os códigos de conduta dos mafiosos, usam, porventura, todo esse universo conceptual para projectar num mundo mais anónimo e quotidiano sem violência (que não seja a da morte de um ente querido) onde o herói pode ser um qualquer japonês da velha-guarda. Neste sentido, se o filme está dirigido única e exclusivamente para um personagem (todos os outros são aparições para o ajudar no processo introspectivo), então o seu carácter decididamente reconhecível torna, na maior parte das vezes, desinteressante todos os meios para se chegar aos fins. Se, em rigor, a estrutura formal do road-movie pode ser resumida da seguinte forma: um tornar os meios da viagem fins em si mesmos, então aqui os meios já estão contaminados por uma forma de fazer cinema estanque e vítima de fórmulas e pré-concepções a começar pela driving-force da narrativa que é o próprio Ken Takakura, alguém que já conhecemos e vimos antes sequer de dizer ou fazer qualquer coisa. Vale aqui o ditame bíblico: Nihil novi sub sole. 



I'm Flash! (2012) de Toshiaki Toyoda: **
O novo filme do talentoso realizador cheira a parcial desilusão. Isto não quer dizer necessariamente que se trata de algo irreconhecível ou mesmo dispensável (fartos de sell-outs já estamos nós e tal não é o caso). Pelo contrário, I'm Flash! peca por defeito: podia ser muito mais do que finalmente apresentou, embora haja aqui um traço distintivo (aqueles slow-motion!) e alguns momentos que revelam timidamente a capacidade de transformação das suas imagens. É curioso como o tão esperado regresso de Toyoda a uma narrativa mais tradicional (depois de dois filmes afiados e artísticos mas longe de consensos) representa um passo para trás não só quanto a uma coerência de ritmo como à consolidação completa das angústias dos seus personagens, executada de forma inteiramente pessoal, mas convicente, algo omnipresente na sua obra pelo menos desde Blue Spring). Dois terços mornos e uma parte final bem orquestrada faz deste I'm Flash! um dos capítulos mais desiquilibrados da sua filmografia, conseguindo ainda ser um filme interessante quando se esmera. No entanto, não se espere daqui nenhuma obra-prima.

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