Flag In The Mist (1965) de Yoji Yamada: ***
Os onze filmes que separam a estreia de Yoji Yamada com Nikai no Tanin (1961) à referência da comédia popular com o primeiro capítulo de Tora-san (1969) são totalmente desconhecidos pelas audiências e crítica ocidental. O que fez, portanto, Yamada antes de Tora-san, durante os anos 60? Era a pergunta que se mantinha. Podemos compreender que a carreira do realizador se dividia entre, por um lado, os thrillers à Yoshitaro Nomura (no qual este Flag In The Mist se enquadra) e, por outro, exercícios coloridos e caricaturais, embrionários já da figura castiça interpretada por Kiyoshi Atsumi (a trilogia Baka, rodada toda no ano de 64 é um excelente exemplo destas comédias). Ora, Flag In The Mist é como dissemos um filme de frissons, um policial com misturas de vendetta. Quem esperaria pela linguagem calorosa, familiar e feliz da obra de Yamada encontrará aqui uma intriga mais pesada e contrafeita a finais felizes (que estranhamente foi popular o suficiente para ser alvo de um remake, dez anos mais tarde, por Katsumi Nishikawa). É um filme decente, com uma cinematografia sem exageros, mas afiada quando tem de ser, e que conta com uma interpretação boa de Mistuko Baisho, a Sakura de Tora-san, aqui diametralmente oposta à gentileza pueril que a caracterizou nessa saga lendária.
Curioso como mesmo aquela que foi considerada uma das produções mais polémicas e chocantes no seu erotismo bárbaro não prescinde de uma leitura histórica mínima que é comum à esmagadora maioria dos filmes de guerra. Pasolini fez uma coisa semelhante com os 120 Dias de Sodoma de Sade, ou seja, politizou os instintos de degradação sexual do próximo, pulsões essas que costumam aparecer na vida como apolíticas. Ohara - se bem que muito menos astuto - também tornou monstros os militares que estiveram por detrás do entusiasmo bélico da Segunda Guerra. A despeito de não haver nenhuma cena de batalha e o filme ser exclusivamente povoado por torturas físicas misturadas com maldade sexual, todas as culpas da decadência do período entre guerras estão subrepticiamente atribuidas aos dois militares que abusam descaradamente do seu poder, castigando uma mulher inocente e um actor afeminado de kabuki - demonstração última da degradação dos instintos militares e masculinos. Ohara herda, porém, um paradoxo que Pasolini tinha suspendido e que não é alheio à gramática até do filme de guerra: a descrição extensiva dos males (sexuais, bélicos, etc.) gera um espectador em sentido contrário à mensagem de denúncia ou crítica, pois ele quer explorar, ver, sentir aquilo que se denuncia. Este é o límite da crítica em cinema.
Gelatin Silver, Love (2009) de Kazumi Kirigami: *
Qual será o resultado final da transposição de um talentoso fotógrafo (Kazumi Kirigami) para o mundo da imagem em movimento? Persistência e criação de imagens poderosas contrapostas a um esvaziamento completo de intenções e argumento. Não se trata apenas da lentidão natural e do ritmo vagaroso - características que podem, de facto, fazer realçar tantas outras qualidades, nomeadamente, a atmosférica - mas de uma incapacidade categórica em aprofundar a psicologia do seu protagonista, um peeping tom fascinado com uma mulher misteriosa. Não basta a dimensão pictórica, pois tudo no outro domínio é opaco e embrutecido, e podemos dizer que, chegado o final, observámos apenas sequências de fotografias em movimento, cuidadas e bem construídas, mas cuja intensidade e relação com o seu seguimento carecem fatalmente.
Flowers (2010) de Norihiro Koizumi: *
O cinema japonês sempre representou o feminino, isto é um facto. Porém, através de um olhar cuidadoso, percebemos que não foi sempre um cinema sobre mulheres de carne e osso, e mesmo quando o era, tornava-se inevitável que ele fosse produto de uma visão masculina, que dificilmente conseguia visar as mulheres sem uma quantidade de predicados (os da beleza e da pureza de carácter) que as restringiam. Já Kiju Yoshida, um cineasta que nunca deixou de contrariar esta tendência subreptícia de representação dos sexos, dizia recentemente numa entrevista que: "But when you go down to the level of the individual reality of human
beings, there is no abstract idea of man or of woman. There are just
concrete man and concrete woman, each looking at the other from a point
of view with certain individual distortions". Ora Koizumi no seu terceiro filme (depois do intragável Midnight Sun e do tímido Wrestling with a Memory) não consegue escapar a essa limitação temática. Na verdade, as seis mulheres deste Flowers (veja-se como o título já representa o lugar-comum da suprema graciosidade do feminino) estão todas a representar a mesma coisa, a sua aparente multiplicidade não é mais do que uma ilusão. Não deixa mesmo de ser algo perversa a maneira como Koizumi, ao construir imagens clássicas e de inspiração quase simbólica e nacional (os comboios, as flores de cerejeira, etc.) as faz puxar, através de um reconhecimento cultural e colectivo, para narrativas, pretensamente poéticas e essênciais, onde a mulher se confronta sempre com os problemas específicos do seu género (casamentos por encomenda, morte de um amante, gravidez, maternidade e educação dos filhos, etc.). Apesar de um sentido estético apurado, as protagonistas deste filme tautológico e pouco honesto podem ser vistas como pequenos postais de optimismo reluzente, ou melhor, imagens cristalizadas de um ideal de feminino que não se sujeitou, quiçá, ao exame da realidade.
Saudade (2011) de Katsuya Tomita: ***
Representar com a máxima fidelidade os problemas sociais da emigração não era tarefa fácil. Não é por acaso que raramente um cineasta, sem exageros e falsos truísmos, se propõe a fazê-lo de maneira a que desenvolva as razões reais e dramáticas da incomunicabilidade entre os estrangeiros e os nativos (mas não só esses, todos os humanos). Aliás, o título desta longa proposta de Tomita - um ex-camionista tornado cineasta -, Saudade, deixa antever tudo: se a palavra pode significar, em primeiro lugar, a expressão portuguesa intraduzível para outra língua, a mesma sonoridade pode para um japonês ser confundida com o nome Sanno Dachi, o complexo de apartamentos que alberga a comunidade forasteira de emigrantes (brasileiros, filipinos, tailandeses, etc.). É sempre nesta exploração de uma duplicidade de perspectivas (e perspectiva querendo dizer o conteúdo de significado de um olhar sobre uma mesma coisa) que a as aventuras destes personagens atípicos e complexos incidem. É até mesmo esta multiplicidade de histórias, visões, tomadas de posição e angústias que faz que Tomita não patrocine directamente uma ideologia cerrada, mas ao optar por deixar correr estas narrativas fragmentárias, a esperança é que se consiga iluminar pelo menos uma verdade: nos subúrbios do país mais moderno do mundo, esconde-se uma tristeza, um sentimento primitivo de saudade que não escolhe o seu objecto nem a sua nacionalidade.
Tokyo Park (2011) de Shinji Aoyama: **
Aoyama neste seu novo filme não faz mais do que apresentar um cinema de estilhaços. A sua câmara, que outrora tinha alcançado momentos de depuração estética tão cerrados como em Eureka ou até mesmo o subestimado Crickets, agora está envolta numa fibra de gentileza e leveza, uma falta de complicação pseudo-complexa. Ou melhor, um pôr tudo no mesmo plano, com a mesma intensidade de proménade, que decididamente enfraquece a unidade narrativa, separando-a da construção psicológica dos seus personagens, aqui mais libertos do que nunca. Dir-se-ia que essa pulverização dispersa, que no limite mistura pinceladas de fantástico num ritmo ajuízado, é uma maneira mais adequada de viver a realidade própria dos seus espaços e intenções fílmicas. E, de facto, certos "momentos" de Tokyo Park, mas não mais do que certos momentos, demonstram a destreza de um cineasta subtil, como Aoyama sempre foi - mesmo nos momentos mais radicais da sua carreira. Mas tudo isto não perdoa certas inadequações estilísticas, por exemplo, uma fotografia demasiado pragmática, ver televisiva, e alguma música desconfortável e invásiva.
The Drudgery Train (2012) de Nobuhiro Yamashita: ****
De início, o novo filme de Yamashita tem uma semelhança incrível com as suas primeiras três obras (Hazy Life, No One's Ark e Ramblers), isto porque, tal como nessa trilogia, conta com três personagens disfuncionais (quase sempre dois rapazes e uma rapariga), nomeadamente um chamado Kanta, e a narração vai descrevendo a sua rotina bizarra e sem grande capacidade monetária. Era um cinema com um humor refinado que brotava de situações inesperadas e de um ou outro personagem meio sorumbático, mas assim que dizia qualquer coisa a outro, tinha espontaneamente piada. Não esqueçamos que Yamashita, mesmo posteriormente na sua carreira, filmou sempre relações de amizade: desde Linda, Linda, Linda até ao seu último filme, My Back Page que não deixou de procurar a intimidade inter-subjectiva, mas também os seus problemas. Em Drudgery Train, continua-se esse legado, mas mantêm-se a estética morna, demorada desses primeiros filmes. A isto - talvez pela presença de Shinji Imaoka no argumento - adiciona-se um crescente isolamento de um dos personagens, Kanta, que várias vezes para se evadir da sua solidão recorre a peep-shows entre outros actos rotineiros como espiar o seu amor não correspondido pela vitrine da livraria do bairro. Muitas vezes, dei por mim a pensar que estava a ver um filme pink sem sexo, isto é, que mesmo nas cenas supostamente sexuais, não dispensa de uma componente radical de esbatimento que vai oprimindo cada vez mais todo o ambiente meio desolado e solitário do seu personagem. Ao começo bem-disposto e humorado vai-se fechando progressivamente o cerco à volta de Kanta (mas também à volta da própria assinatura autoral de Yamashita) e parece mesmo que apenas o pessimismo triunfa. No entanto, até nesses momentos de desespero, a mise-en-scène toma um registo de sadismo cómico que encerra a incapacidade do ingénuo e básico Kanta se relacionar (ou dos outros se relacionarem com ele) numa espécie de contradição. Sorrimos com a sua desgraça, mas não queremos a sua ruína.
Saudade (2011) de Katsuya Tomita: ***
Representar com a máxima fidelidade os problemas sociais da emigração não era tarefa fácil. Não é por acaso que raramente um cineasta, sem exageros e falsos truísmos, se propõe a fazê-lo de maneira a que desenvolva as razões reais e dramáticas da incomunicabilidade entre os estrangeiros e os nativos (mas não só esses, todos os humanos). Aliás, o título desta longa proposta de Tomita - um ex-camionista tornado cineasta -, Saudade, deixa antever tudo: se a palavra pode significar, em primeiro lugar, a expressão portuguesa intraduzível para outra língua, a mesma sonoridade pode para um japonês ser confundida com o nome Sanno Dachi, o complexo de apartamentos que alberga a comunidade forasteira de emigrantes (brasileiros, filipinos, tailandeses, etc.). É sempre nesta exploração de uma duplicidade de perspectivas (e perspectiva querendo dizer o conteúdo de significado de um olhar sobre uma mesma coisa) que a as aventuras destes personagens atípicos e complexos incidem. É até mesmo esta multiplicidade de histórias, visões, tomadas de posição e angústias que faz que Tomita não patrocine directamente uma ideologia cerrada, mas ao optar por deixar correr estas narrativas fragmentárias, a esperança é que se consiga iluminar pelo menos uma verdade: nos subúrbios do país mais moderno do mundo, esconde-se uma tristeza, um sentimento primitivo de saudade que não escolhe o seu objecto nem a sua nacionalidade.
Tokyo Park (2011) de Shinji Aoyama: **
Aoyama neste seu novo filme não faz mais do que apresentar um cinema de estilhaços. A sua câmara, que outrora tinha alcançado momentos de depuração estética tão cerrados como em Eureka ou até mesmo o subestimado Crickets, agora está envolta numa fibra de gentileza e leveza, uma falta de complicação pseudo-complexa. Ou melhor, um pôr tudo no mesmo plano, com a mesma intensidade de proménade, que decididamente enfraquece a unidade narrativa, separando-a da construção psicológica dos seus personagens, aqui mais libertos do que nunca. Dir-se-ia que essa pulverização dispersa, que no limite mistura pinceladas de fantástico num ritmo ajuízado, é uma maneira mais adequada de viver a realidade própria dos seus espaços e intenções fílmicas. E, de facto, certos "momentos" de Tokyo Park, mas não mais do que certos momentos, demonstram a destreza de um cineasta subtil, como Aoyama sempre foi - mesmo nos momentos mais radicais da sua carreira. Mas tudo isto não perdoa certas inadequações estilísticas, por exemplo, uma fotografia demasiado pragmática, ver televisiva, e alguma música desconfortável e invásiva.
The Drudgery Train (2012) de Nobuhiro Yamashita: ****
De início, o novo filme de Yamashita tem uma semelhança incrível com as suas primeiras três obras (Hazy Life, No One's Ark e Ramblers), isto porque, tal como nessa trilogia, conta com três personagens disfuncionais (quase sempre dois rapazes e uma rapariga), nomeadamente um chamado Kanta, e a narração vai descrevendo a sua rotina bizarra e sem grande capacidade monetária. Era um cinema com um humor refinado que brotava de situações inesperadas e de um ou outro personagem meio sorumbático, mas assim que dizia qualquer coisa a outro, tinha espontaneamente piada. Não esqueçamos que Yamashita, mesmo posteriormente na sua carreira, filmou sempre relações de amizade: desde Linda, Linda, Linda até ao seu último filme, My Back Page que não deixou de procurar a intimidade inter-subjectiva, mas também os seus problemas. Em Drudgery Train, continua-se esse legado, mas mantêm-se a estética morna, demorada desses primeiros filmes. A isto - talvez pela presença de Shinji Imaoka no argumento - adiciona-se um crescente isolamento de um dos personagens, Kanta, que várias vezes para se evadir da sua solidão recorre a peep-shows entre outros actos rotineiros como espiar o seu amor não correspondido pela vitrine da livraria do bairro. Muitas vezes, dei por mim a pensar que estava a ver um filme pink sem sexo, isto é, que mesmo nas cenas supostamente sexuais, não dispensa de uma componente radical de esbatimento que vai oprimindo cada vez mais todo o ambiente meio desolado e solitário do seu personagem. Ao começo bem-disposto e humorado vai-se fechando progressivamente o cerco à volta de Kanta (mas também à volta da própria assinatura autoral de Yamashita) e parece mesmo que apenas o pessimismo triunfa. No entanto, até nesses momentos de desespero, a mise-en-scène toma um registo de sadismo cómico que encerra a incapacidade do ingénuo e básico Kanta se relacionar (ou dos outros se relacionarem com ele) numa espécie de contradição. Sorrimos com a sua desgraça, mas não queremos a sua ruína.
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