05/12/12

Fragmentos de 2012/12/05



Mud and Soldiers (1939) de Tomotaka Tasaka: ****
Intervenção cirúrgica de Tasaka que lança aqui um olhar quase-narrativo absolutamente despudorado acerca do ambiente bélico do embate sino-japonês. O carácter repetitivo dos rituais de preparação para o combate, assim como as longas e cansativas sequências de marcha (por entre a lama suja ou terra batida) representam mais que um simulacro documental ou uma tentativa de ficção newsreel, pelo contrário, é exasperando esse sentimento de realidade cansativa e até entediante que Tasaka vai construindo uma visão em tudo próxima do absurdo e do sem sentido. Para além disso, intervalado entre as cenas de repouso e as da lenta marcha para a morte (as poucas que conservam uma narrativa), estão as portentosas e intermináveis cenas de batalha que são apenas percepcionadas por um dos lados, permanecendo o outro relegado, desconhecido. Neste sentido, resulta fascinante para o espectador a forma como os soldados japoneses agridem o inimigo sem sequer o ver na maior parte das vezes, atirando para o vazio as suas balas e torpedos, na esperança de o encontrar e o acertar no meio dos terrenos vastos, áridos e solarengos, filmados com uma violência tremenda e com uma precisão arrebatadora. Finalmente quando vemos a cara do inimigo, vemo-lo prostrado na sua derrota, assim nos aparecendo como um outro como nós, mas reduzido, transfigurado e com o orgulho ferido, com aquele olhar pleno de humanidade. Já a cena final, exacerbado festejo patriótico de victória, tem de ser lida como o resultado eficaz dos soldados que lutam para chegar a essa finalidade, apenas para sair do inferno absurdo que é a guerra. Como encarar, então, aquele plano estonteante em que o capitão, ouvindo os derradeiros elogios fervorosos ao Imperador de um seu soldado moribundo, vira abruptamente as costas à câmara, como se estivesse não só a virar as costas ao dito, mas também ao próprio espectador que, por esta altura, subscreveria a cem por cento os devaneios imperialistas de um Japão em expansão pela Ásia? O mais comum na estética anti-guerra é refutar a experiência bélica exteriormente, isto é, pelos valores éticos do reconhecimento do outro como igual, mas em Mud and Soldiers a devastação vem de dentro, vem da própria prática de guerra e não através das abstrações teóricas, necessárias, porém, ao seu término.



Sun in the Last Days of the Shogunate (1957) de Yuzo Kawashima: *****
Disparando para todas as direcções com um humor corrosivo e satírico, Kawashima prossegue aqui com a sua visão integralmente cínica das relações humanas, não perdoando nada nem ninguém desse cepticismo irónico e grotesco, todavia, nunca optando por soluções pessimistas ou trágicas. Pelo contrário, o tom leve, introduzido pela comédia non-stop e irreverente, impõe-se a todas as circunstâncias, mesmo as mais escatológicas, afinal, servindo essa quase histeria cinematográfica como um pulular constante de interesses e patranhas para representar a disposição particular e quase esquizofrénica do fim da era Tokugawa. Raramente saídos dos ambientes bordelescos do quarteirão do prazer, todos os personagens se enganam numa trama em que apenas a mentira prevalece, coexistindo todos no mesmo espaço material como se o Japão modernizado fosse, afinal, um albergue gigante no qual exclusivamente a lei do mais matreiro impera. Assim, a aparente dispersão narrativa e dos personagens fica centrada naquele castiço inquilino que subverterá a sua condição, de explorado a explorador, fazendo a ligação entre todas as histórias e peripécias com o seu carisma meio tresloucado e hilariante, mas não deixando de gargalhar, doente (a sua aparente tubercolose é decididamente simbólica: corrupção moral). Kawashima é, então, sagaz o suficiente para dialogar com várias vertentes e lugares-comuns do filme de época, parodiando-os ao máximo num misto de crítica e tributo (desde aos filmes de amores fatais ao filme de fantasmas, nada é poupado!), jamais esquecendo o tempo específico que quer representar. Engraçado como a crítica ocidental tradicionalmente entende o trabalho de Kawashima à luz da do seu discípulo, Shohei Imamura que aqui co-assinava o argumento e era assistente de realização. Porém, trata-se aqui do contrário. Imamura nasce desta obra que simultâneamente conserva uma alegria em estar vivo, mas não deixa de ser altamente ácida em todas as suas vertentes.



Each Day I Cry (1963) de Kiriro Urayama: ****
Aparentemente um exercício Nouvelle Vague que nos poderia reenviar a uma estética de pura contestação juvenil na senda da geração Shochiku (Shinoda, Oshima, Yoshida, etc.), mas também da rebeldia destrutiva presente na mocidade dos filmes da geração tribo do sol da Nikkatsu, Urayama certamente engana a vista com esta descrição das dificeis condições sociais e afectivas de uma jovem garota que, mesmo nesse clima em tudo adverso, conhecerá o amor numa figura que, acima de tudo e todos, a protege, fazendo conservar, assim, o seu lado mais infantil e puro, aquando dos seus encontros. Nesses momentos luminosos, resta-nos sublinhar os "close-ups" à face transfigurada da rapariga, que como que recupera uma expressão de inocência perdida frente ao rapaz que ama. A oposição entre o relacionamento a dois e todos os outros momentos mais duros de vivência são precisamente o ponto forte aqui: como se se criasse uma cápsula à volta dos dois, porém, sempre pronta a ser abalada pelo mundo frio e interesseiro dos outros. Não nos pode estranhar aquela cena final, digna de reverência, em que a protagonista chora a plenos pulmões por não poder ficar junto do seu amante e a sua despedida é pautada por movimentos de câmara subtis que vão revelando todos os olhares de censura e curiosidade da imensa massa de pessoas que os observam. De todas as maneiras, o peso da sociedade manifesta-se não numa abstração qualquer, mas nestas cenas em que os outros interferem e impossibilitam, no final, a concretização do amor a dois. Por esta razão, trata-se de um filme cuja rebeldia serve como desculpa para o nascimento das várias tentativas de redenção, apesar de mesmo essas estarem, talvez (o final aberto é prova disso) condenadas ao fracasso. Se não ao fracasso, à espera infindável dos corações em ferida.



Mother (1988) de Zenzo Matsuyama: *
Partilha integralmente dos defeitos e pecados do último filme de Kinoshita, feito no mesmo ano do que este, Father, a saber: falta de profundidade, inclusão desnecessária de comédia superficial e sem graça e, finalmente, uma estética anos 80 que se afigura bastante datada e quase anacrónica, ainda por cima, quando se pretende narrar as curtas peripécias de uma família campestre e mais tradicional.

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