08/08/14

Fragmentos de 2014/08/08




The Blue Mountains (1949) de Tadashi Imai: ***
New Blue Mountains (1949) de Tadashi Imai: **
Tadashi Imai tem duas facetas. Por um lado, a do fatalista irado que se consubstancia em tragédias anti-bélicas, anti-feudais e anti-fascistas e, por outro, a do gentil democrata que filma dramas modernos do pós-guerra criticando ainda as mesmas raízes nefastas do pensamento tradicionalista e debruçando-se numa nova era de justiça e igualdade. O popular The Blue Mountains e a sua sequela directa, lançada no mesmo ano e partindo imediatamente onde o outro tinha ficado, faz parte do segundo paradigma atrás descrito. A presença da professora Shimazaki deve ter sido explosiva na altura em que Blue Mountains estreou: pela mão do esquerdista Imai, ela representava a nova mulher saída da democracia japonesa ainda muito recente. Quando ela se insurge contra os (maus) costumes de então, esgrimindo argumentos a favor da liberdade de uma das suas alunas poder sair com um rapaz, a guerra com a comunidade só podia ser uma certeza como se esta nova democracia, ainda de matriz masculina, estivesse pelas costuras quando confrontada com vícios culturais que não se mudam de um dia para o outro. De facto, a cena da discussão na sala de aula é o que faz deste filme um marco tão especial do chamado cinema do pós-guerra. Em primeiro lugar, porque não demoniza o passado constrangedor de uma nação cheia de erros e coloca as duas perspectivas em diálogo: as alunas que reprimem a colega para defender a (falsa) honra da escola e Shimazaki (não é inocente ser uma professora de inglês, visto que o Japão ainda estava sob domínio americano). Em segundo, porque discute abertamente o estatuto da mulher numa sociedade onde o seu futuro passava ou por ser prostituta, ou por ser esposa por conveniência (veja-se a este propósito o primeiro encontro sexista da professora com o médico Numata). Infelizmente, os méritos da obra de Tadashi Imai param por aqui. Já no final da primeira parte e ao longo de quase todo o segundo filme há uma intriga mais desinteressante que passa por ludibriar uma associação de pais e o relacionamento um pouco artificial da médica com o professor. Claramente interessado em não tornar a sua mensagem demasiado pesada, Imai cede às tentações mais superficiais do crowd-pleaser.



Lord Tokugawa Ieyasu (1965) de Daisuke Ito: ***
Este épico histórico, antepenúltima produção do pai do jidai-geki antes da reforma, é uma dramatização dos últimos anos da era Sengoku, sem nunca esquecer os seus principais protagonistas e os jogos políticos que poderiam significar o extermínio de um país. Apesar do título e da duração - quase duas horas e meia, o que faria expectar uma narração integral das aventuras do unificador Tokugawa, desde o seu nascimento até à sua morte -, tem-se aqui matéria prima para contar apenas metade da sua vida, parando obviamente no início da aliança inusitada com Oda Nobunaga (grande e lunática prestação de Kinnosuke Nakamura). A verdade é que o personagem Tokugawa Ieyasu só tem significado numa narrativa que descreve ostensivamente aquilo que o circunda, o influência e o repudia. São esses personagens aparentemente secundários da infância e mocidade (a mãe dramaticamente entregue a outro senhor, o pai moribundo, o abade mestre, os servos leais e, claro, Oda) que pintam o período histórico e dão outras cores mais complexas à maturação de Ieyasu. Se os relatos livrescos dizem-nos que Tokugawa era astuto e nobre, mas talvez demasiadamente matreiro, Ito nesta sua versão trata-o sempre como um herói justo e quase inconsciente na sua bondade. Mesmo que o filme supere a realidade, esta é um versão cuidada de uma época muito especial da História Japonesa. A ver também pelos supremos movimentos de câmara e pela batalha final pintada a azul.



The Wife of Seishu Hanaoka (1967) de Yasuzo Masumura: ****
No centro dos filmes de Masumura, independentemente do tempo e do lugar, estão as mulheres - como estão também na obra de Kenji Mizoguchi, Kiju Yoshida ou Kaneto Shindo (este último assinou este argumento). Particularmente nos seus filmes de época, onde se substitui a crítica rápida e desenfreada à sociedade de consumo e à ganância humana por uma meditação rigorosa sobre o papel esquivo da mulher na sociedade feudal. Propondo-se contar as descobertas surpreendentes no ramo da cirurgia de Seishu Hanaoka, o primeiro médico conhecido por operar um paciente com anestesia geral, Masumura parece muito mais interessado em focar a sua atenção na conflituosidade doméstica de Kae, a esposa por encomenda do cirurgião com a calculista Otsugi, a mãe dominadora e verdadeiramente a chefe de família (duas actrizes, Ayako Wakao e Hideko Takamine no seu melhor). À semelhança de Seisaku's Wife, outro filme de Masumura onde não havia qualquer tipo de permissão para uma esposa poder ser alguém fora das obrigações incutidas pelo dever social, esta mulher de Seishu Hanaoka parece mesmo viver sob a ditadura silenciosa da sua sogra e a sua existência resume-se a trabalhar e a continuar a linhagem da família dos médicos. Masumura varia aqui o seu registo das "escravaturas humanas" e das "vontades reprimidas", responsabilizando um valor cultural não necessariamente masculino, porque também incutido e patrocinado pelas mulheres. Com o médico em segundo plano, obsessivamente tentando desenvolver o anestésico que o tornaria famoso, as duas mulheres competem silenciosa e fatalmente pela sua atenção e não deixa de ser melancólica a maneira como ambas estão ainda demasiadamente presas à sua indiferença. Masumura raramente descreve o fenómeno amoroso nos seus filmes, mas constantemente disseca (como um cirurgião social) os relacionamentos entre homens e mulheres. Não será o último plano (Kae, cega, escondendo-se no meio das plantas venenosas) um triste presságio da sua sorte e da sua solidão, assim como a de todas as mulheres?



Horny Diver - Tight Shellfish (1985) de Atsushi Fujiura: 0
O pessoal da Synapse Films tem feito um trabalho notável em divulgar um género tão desconhecido ou maltratado como é a Roman Porno da Nikkatsu - no espaço de dois anos lançaram já mais de vinte filmes e estão prometidos mais títulos para o futuro. Infelizmente, as suas intenções não são as de desenterrar grandes cineastas ou pérolas desconhecidas que provem, mais uma vez, que o cinema erótico para muitos realizadores era uma alternativa digna ao cinema "sério" dos outros estúdios. Na verdade, o catálogo está muito mais interessado em rebuscar as produções mais comezinhas, mais datadas e mais industrialmente sexuais, jogando com géneros e sub-géneros do softcore e só muito esporadicamente há lugar para os grandes filmes desconhecidos. Atsushi Fujiura preenche bem os requisitos comerciais que a companhia desejava: especializou-se nas comédias quentes e contextualizava-as nas tradições japonesas, dando um certo ar exótico e caseiro à coisa. O cenário de Pleasure at the Hot Spring, por exemplo, eram as termas tradicionais japonesas e na série de filmes Diver, na qual este sugestivo Tight Shellfish é uma das últimas instalações, o tema são as Ama, pescadoras e mergulhadoras que segundo os costumes usavam pouquíssima roupa e eram quase equivalentes a amazonas, mulheres guerreiras e com o sangue na guelra. Tirando os pormenores culturais (que aqui valem tanto como qualquer fetiche ou adorno), Fujiura tende a repetir o mesmo esquema que aplicara noutros episódios da série e até no já citado Pleasure at the Hot Spring. Há uma história vaga de um contrato de direito à terra, há um fuinha que orquestra tudo para conseguir assegurar a sua parte do negócio e, principalmente, há um humor completamente deplorável (desde a banda-sonora country a gags mais chocantes que envolvem expelir coisas das partes privadas), prova última que Fujiura não tem grande interesse em contar uma história minimamente interessante mas, antes, arranjar pretextos para "justificar" as cenas sexuais. Passados só alguns minutos conseguimos logo perceber que aqui não vai haver elemento diferenciador.



Blazing Famiglia (2012) de Kazuyoshi Kumakiri: *
Perguntava-me - e bem - que raio se tinha passado com Kumakiri para filmar uma barafunda como esta, logo depois do incrível Sketches of Kaitan City? Baseado num manga (como já tinha sido o fraco Freesia: Bullet Over Tears) a verdade é que aqui estamos logo enredados numa história demasiadamente intrincada, com imensos personagens que não encontram qualquer constância ou papeis fixos dentro dos seus problemas e angústias (acreditem: o exagero sentimental é notável). Com um toque de nostalgia pela cultura dos bosozoku (os motards jovens japoneses) e uma vaga saudade dos duros filmes de yakuza dos anos 70 (numa arcada, ouve-se a melodia inconfundível de Battles Without Honor and Humanity) Blazing Famiglia entra em piloto automático da brutalidade física, enfiando um universo familiar e íntimo à pressão com flashbacks apressados e outros parcos dispositivos narrativos que não permitem nunca ficarmos com os personagens nem desenvolver grande coisa com eles. Apesar das nobres referências, Kumakiri acaba por copiar a lamentável masculinidade dos dois Crows Zero de Takashi Miike: aqui os personagens só são fortes na medida da sua boçalidade e num filme que quase não tem mulheres, esperava-se que os laços da amizade masculina fossem mais do que "esmurramos juntos os nossos inimigos". Em conclusão: um exercício de estilo vazio (pena a fotografia ser tão boa e certos planos - como aquele em que Igarashi imagina o fantasma de Watanabe - serem bastante criativos em termos formais) completamente perdido num sentimentalismo grosseiro e numa desorganização estrutural de como contar uma história.



Pecoross' Mother and Her Days (2013) de Azuma Morisaki: ***
O ano passado, Pecoross' Mother and Her Days foi eleito filme do ano pelas prestigiadas revistas de cinema Kinema Junpo e Eiga Geijutsu, facto quase inédito, visto as orientações editoriais de cada uma dessas revistas serem radicalmente opostas (a KJ versa sobre filmes mais "comerciais" e a EG é conhecida pelas suas escolhas polémicas, quase sempre favorecendo cinemas mais marginais). Como interpretar essa eleição depois de comprovar o tão elogiado filme sobre a relação entre um filho e a sua mãe senil? Em primeiro lugar, quem esperava um dramalhão ou um tear-jerker (como tinha sido Chronicle of My Mother) não conhece os antecedentes cómicos do realizador. Com efeito, Azuma Morisaki, de 86 anos, especialista de um certo humor japonês juntamente com Yoji Yamada (ele próprio chegou a realizar o terceiro capítulo da celebérrima saga Tora-san) teve aqui a sua oportunidade de retratar um tema bastante sério recorrendo à graça leve da rotina, por mais grave, preocupante, e triste que ela se pudesse aparentar. O riso, se houver, não castiga os costumes mas liberta-os e revela a "humanidade" que subjaz aos personagens até mais extravagantes e caricatos. Pecoross, pseudónimo de um autor de manga que descreve a história e a situação da sua mãe através dos quadradinhos e dos desenhos amáveis, não é à primeira vista um personagem típico de uma tragédia. Nem mesmo a sua mãe - de quem nunca vemos o desenrolar do processo de demência, mas surge sempre já padecendo dessa condição - é uma vítima totalmente incapaz. Da sua memória desorganizada e livre como uma criança, vamos saltando de flashback em flashback, iluminando o que perdeu, o que se passou, o que viveu. Porventura a razão mais comovente do sucesso do filme vem do facto que antes de o filmar, tenha sido diagnosticado a Azuma Morisaki demência vascular. Cada vez mais próximo da realidade dos seus personagens e sem grande dramatizações, Morisaki continua a sorrir sabiamente. Com esta gentileza que não fica nada aquém da realidade (tiraria, por vezes, a música a passos intrusiva), Pecoross' Mother and Her Days filma os filhos, as mães e os idosos com um respeito inabalável, apesar dos risos e das lágrimas.



Still the Water (2014) de Naomi Kawase: ****
A certa altura de Still the Water, Kaito diz a Kyoko que tem medo do oceano porque este está vivo. Poderíamos dizer que essa recusa em mergulhar nas coisas vivas e perigosas define o jovem rapaz e o primeiro bloqueio amoroso que o une a Kyoko e à sua própria mãe ausente, mas, no âmbito da sacralização atmosférica de Naomi Kawase (que aqui atinge um dos seus picos), também se podia muito bem afirmar que não são só as marés que estão vivas, mas todo o Mundo Natural e é ele o grande personagem, silencioso mas primordial. Com efeito, os esplendorosos planos aquáticos, os planos do vento a fazer dançar as árvores e as folhas e os planos do sol que tudo cobre e tudo irradia (até a destruição humana do habitat) servem muito mais como revelações sensoriais do que adornos estéticos exíguos, o já por nós conhecido "zen do postal". Com a Natureza, Kawase quer explorar as profundas relações entre homens e mundo. Com a Natureza, Kawase quer, enfim, traçar todas as linhas substanciais do nosso mapa afectivo: sejamos humildes perante ela, porque ela comanda-nos, mas participemos nela porque não temos escolha senão responder ao seu abraço. Como explicar a dupla referência ao sacrifício do cabrito (cena tão assustadoramente primitiva) senão por essa mesma integração humana e violenta na inexplicabilidade natural, nesses mares que nos olham e nesse vento que nos sopra? Como interpretar a serenidade comovente da mãe de Kyoko quando confrontada com a sua morte, cantando com os outros e despedindo-se enquanto a brisa leva o seu espírito (aí, Kawase atinge um dos pontos maiores da sua filmografia recheada de momentos familiares íntimos)? Estes exemplos são provas de uma inquestionável afinidade holística, de integração com o todo, sendo que a individualidade tímida destes personagens é iluminada sempre pela vida supérflua e infrene que os cerca. Still the Water também não podia deixar de jogar com os contrastes, como se encenasse um jogo de paradoxos sagrados que se unem finalmente: a celebração e a passagem, a violência e o amor, a morte da mãe de Kyoko e a descoberta sexual dos dois jovens no meio do pântano. Começamos nas ondas raivosas e acabamos nas profundezas de um mar demasiado azul. Despidos, aceitando todas as regularidades e irregularidades do Mundo Natural, primitivos.

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